“Falar como um papagaio” é tagarelar, “papagaiar” é repetir algo sem saber muito bem o que se diz e “soltar papagaio” é empinar pipa. Só uma ave muito identificada com o Brasil poderia dar origem a tantas expressões populares. Essa relação é antiga: os primeiros europeus que aqui chegaram batizaram a região de “Terra Papagalis” antes de adotarem nomes mais cristãos, como Terra de Vera Cruz e de Santa Cruz. Diante de tudo que viram pela primeira vez – índios seminus, árvores enormes, frutos coloridos e animais exóticos –, os papagaios foram uma das novidades que mais impressionaram os forasteiros.
O fascínio exercido por essa ave é fácil de entender. Seu porte é elegante, e a beleza de suas plumas concentra todas as cores do arco-íris, presentes na natureza tropical, e faz lembrar a palheta de um artista, o que a tornou um dos temas preferidos dos pintores. A carta escrita pelo navegador português Pero Vaz de Caminha (1450?-1500) em 1500 já mencionava essa beleza ao relatar que os participantes de sua expedição recolheram “papagaios vermelhos, muito grandes e formosos”.
Além disso, o papagaio repete os sons emitidos pelos humanos – alguns chegam a dar a impressão de que estão falando, embora nem sempre seja possível compreender o que “dizem” – e é facilmente domesticável, apesar de ter a capacidade de voar para longe se quiser. Exibir uma ave dessas no dedo ou no ombro sem nenhuma corrente ou ouvi-la cantar versos inteiros de músicas são motivos de orgulho para seu proprietário.
No século XVI, enquanto a Europa era retratada pela alta cultura e o Oriente por seu mistério, a América se destacava por seus nativos, tão diferentes dos colonizadores, e, é claro, por sua natureza. Os primeiros mapas que os europeus fizeram do Novo Mundo eram enfeitados com desenhos de papagaios, que resumiam em si a novidade da terra recém-descoberta, o colorido dos trópicos e a diferença em relação aos bichos e às plantas do Velho Mundo.
Viajantes como o frade francês André Thévet (1502-90), Jean de Léry (1534-1611) e o alemão Hans Staden (1525?-79?) mencionavam animais exóticos que encontravam em suas andanças pela América, muitas vezes descritos como “monstros”. Os cronistas sempre reservavam algumas páginas de suas anotações aos papagaios, em geral amistosos, embora às vezes perigosos para os dedos por causa de seu bico afiado.
Essas aves chegaram a viajar nas caravelas quando entraram na lista de presentes que os diplomatas e também os comerciantes trocavam entre si. No século XVIII, ter um papagaio em casa virou moda e sinal de status na Europa. Na mesma época, essas aves intrigaram o naturalista francês Georges-Louis Leclerc (1707-1788), conde de Buffon, que as incluiu nos seus estudos pioneiros sobre a origem da vida na Terra. Para o conde, a espécie era dona de uma “beleza sem igual”.
Muitos anos depois, já nos idos de 1880, o diplomata Joaquim Nabuco (1849-1910) resolveu dar um papagaio de presente a Charles H. Allen, secretário da Foreign Anti-Slavery Society (Sociedade contra a Escravidão no Exterior). Enviou dois deles como prova de “brasilidade”. Já era o final do século XIX, e a imagem do papagaio continuava fortemente associada ao país.
Mas Nabuco não deu muita sorte, pois os papagaios enviados por ele se recusaram a dar qualquer pio em terra estrangeira, mesmo estando muito bem de saúde e aparentemente adaptados ao frio europeu. Ao menos serviram de assunto para as correspondências seguintes entre os dois abolicionistas, que gastaram um bocado de tinta tentando entender a atitude antissocial das aves em Londres.
O comportamento dos bichos de estimação sempre foi assunto de discussão. Segundo o historiador americano Robert Darnton, esses animais são “termos mediadores”: não pertencem ao reino da natureza, já que ganharam lugar na esfera doméstica. Essa característica de transição entre “dois lugares” faz com que virem assunto para histórias, lendas e até mitos.
Uma dessas histórias envolve o papagaio de Pedro Gastão de Orleans e Bragança (1913-2007). Em uma entrevista para o livro As barbas do Imperador, publicado em 1998, esse bisneto de Pedro II, nascido na França e casado com uma espanhola, apresentou seu animal, que “falava” com forte sotaque francês: “Dom Pedrrro, Dom Pedrrro”. Ao que o dono respondeu com o mesmo sotaque: “Cala a boca, papagueios”. A anedota é real e revela a origem francófona de D. Pedro e de sua família, além da estima pelos simpáticos animais, os quais, contaminados pelo acento alheio, passavam a ser a cópia idêntica de seus proprietários.
Animais domesticados também carregam um forte simbolismo. Um exemplo é um pequeno quadro (14 x 23,1cm) pintado por Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), que retratou paisagens famosas do Rio de Janeiro – verdadeiros cartões-postais – quando esteve no Brasil de 1816 a 1821. Na obra “Gato com papagaio”, Taunay mostra os dois animais lado a lado representando, respectivamente, a Europa e o Brasil. Destaca-se não só o colorido apurado como também o domínio da miniatura. É uma espécie de natureza-morta, porém com dois bichos vivos.
As cores do gato são europeias: um preto e branco monótono. Esse animal, que é símbolo da realeza desde a época do Egito Antigo, acabou por encarnar virtudes do Velho Continente, mas também aspectos negativos: a feitiçaria, a falsidade e a sexualidade indecente. Já o papagaio, com suas cores vivas, remete ao Novo Mundo e à “inocência”. As aves são normalmente associadas à noção de fidelidade e, não por acaso, costumam ser retratadas nas mãos de Jesus Cristo.
Há, porém, uma clara tensão na imagem. Os animais se olham de forma disfarçada; não se encaram. O papagaio tem uma “expressão” desconfiada, talvez por medo de ser devorado. Paira uma espécie de mal-entendido, como se entre o Velho e o Novo Mundo faltasse alguma forma de comunicação. Era o que Taunay sentia quando dizia ser incapaz de representar os trópicos. Reclamava que o azul do céu era artificial, que os verdes se impunham excessivos e que o sol do Brasil insistia em jamais parar na mesma posição. O artista pode ter se inspirado na situação que vivia em sua própria casa para pintar o quadro, já que era dono de um papagaio que revelava com suas atitudes o mesmo estranhamento em relação ao seu dono. Estranhamento em relação ao ambiente, ao pintor que o capta, à situação que o rodeia e, não menos importante, ao gato que pode estar prestes a devorá-lo.
E falando em símbolos, quem não se lembra do Zé Carioca de Walt Disney, rapidamente convertido em marca nacional? Bom de samba, de futebol e de capoeira, personalizava o malandro carioca, e só não gostava mesmo de pegar no batente. Nada mais representativo do modelo identitário dos anos 1930, quando a mestiçagem cultural se viu associada à boa malandragem e a uma espécie de sociabilidade particular. Não por acaso, mais uma vez o papagaio reinava glorioso, ao lado do tedioso Pato Donald. Só que, em vez de negro, era verde – diziam – como nossas matas.
Bichos de estimação guardam histórias, afetos e simbologias de toda sorte. Uma vez, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) afirmou que os mitos crescem em espiral – pois se baseiam em contradições, por princípio, insolúveis – e que por isso são “bons para pensar”. Também os papagaios não escapam a esse destino, e aparecem em diferentes versões ao longo de nossa história. Por vezes surgem como animais de estimação que nos fazem pensar de maneira perspectivada e nos permitem entender que não há hierarquia fácil entre o mundo da cultura e o da natureza; entre nós, humanos, e eles, animais. Em outros momentos, aparecem como meros figurantes em ilustrações mais amplas que representam o Brasil a partir de sua flora e de sua fauna exóticas. Em outras ocasiões, ainda, ganham espaço privilegiado como simbologia pátria. De toda maneira, parecem sempre merecer lugar destacado e reservado na iconologia que acabou por desenhar o país, assim como desfilam magnânimos nos relatos que foram dando cara e feição a esse projeto de nação. Disse uma vez o viajante Gustav Aimar, que esteve no Brasil nos idos do século XIX, que o Brasil tinha a forma de um papagaio. Não é preciso ir tão longe e imaginar, mas vale a pena a identificação. Ora, papagaios!
Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP, autora de O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João (Companhia das Letras, 2008) e proprietária de dois simpáticos papagaios – Noel e Rosa –, donos de vocabulário invejável.
Saiba Mais - Bibliografia
BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo. Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos: correspondência 1880-1905. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva” In:____. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/ Edusp, 1974.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena” (cap.7). In:___. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
A Terra Papagalis
Lilia Moritz Schwarcz