Deus quer, Portugal será

Adma Muhana

  • Gravura do do século XVIII ressalta Vieira em sua faceta de escritor com a pena em uma das mãos. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Ao lado de sermões, cartas e pareceres políticos, o padre Antônio Vieira construiu uma obra teológica marcante, que desafiou a Inquisição com interpretações proféticas totalmente originais. Em escritos como a carta Esperanças de Portugal, o Quinto Império do Mundo, a Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, a História do Futuro (junto com seu Livro Anteprimeiro), a Apologia e a Clavis Prophetarum, ele anunciou a implantação na Terra de um reino cristão, conjuntamente temporal e espiritual, intitulado “Quinto Império”. 
     
    Nessas obras, em particular na História do Futuro (redigida entre 1663-1665, mas publicada somente no século XX), o jesuíta procura demonstrar a verdade de um Quinto Império no mundo – após os dos assírios, persas, gregos e romanos – que estaria profetizado nas Escrituras Sagradas. Seu argumento é que, se os historiadores do passado escreveram histórias tidas por verdadeiras, embora fundadas em autores pagãos cuja lisura é parcial e inconsistente, ele, como teólogo cristão, tem legitimidade para escrever uma história do futuro, fundamentado em autores cuja veracidade é necessariamente aceita: os profetas do Antigo e do Novo Testamentos. 
     
    Isso só é possível porque Vieira dispõe de uma noção teológica de tempo que não dissocia a história da profecia: a chamada alegoria facti, isto é, alegoria dos acontecimentos. Segundo esta noção, a Providência divina dispôs um plano para a história do mundo, desde sua criação até o Juízo Final. Nele, as ações, os acontecimentos, os personagens históricos do passado mais remoto aparecem como esboços prefiguradores de ações, acontecimentos e personagens também históricos que, profetizados por aqueles primeiros, se realizaram plenamente quando o Filho de Deus veio ao mundo. As profecias não são previsões singelas sobre eventos particulares (“adivinhações”): significam o modo de Deus revelar que cada acontecimento histórico é parte indivisa de um plano global de salvação para toda a humanidade. A definição rigorosa da profecia faz convergir em Cristo o cumprimento dos eventos e dos personagens do Antigo Testamento: ou em seus ditos e feitos durante a vida terrestre, ou nos sacramentos que deixou como representação concreta de sua existência na Igreja, ou ainda num segundo advento espiritual, quando terão fim o mundo e sua história. Aí, todas as profecias serão esclarecidas e o tempo humano deixará de ter lugar. 
     
    Para Vieira, porém – e nisso reside grande parte das acusações de “favorecimento do judaísmo” que a Inquisição lhe faz – nem todos os acontecimentos históricos esgotaram sua significação alegórica e profética na primeira vinda de Cristo. Faltavam realizar-se e serem compreendidas muitas das previsões tanto do Antigo como do Novo Testamento. Elas se referem sobretudo ao estado de paz e domínio da fé cristã em todo o planeta: o Quinto Império – no qual os inquisidores veem semelhanças com o reino do Messias judaico. O padre foi interrogado pelo Santo Ofício de Coimbra em 30 sessões inquisitoriais, entre 1663 e 1667, chegando a ficar encarcerado por dois anos. Ao término do processo, a sentença do tribunal privou-o de várias atividades como religioso. Mas a decisão acabou invalidada pelo papa Clemente X, que em 1675 o isentou por todo o sempre da alçada da Inquisição. 
     
    No processo inquisitorial, Vieira afirma que entre o fim do mundo e a segunda vinda de Cristo a Terra para todas as gentes – cuja alegoria é a atividade missionária que leva a palavra divina aos diversos povos – ainda haverá tempo para se cumprir uma série de profecias que até então não puderam ser compreendidas: porque não se tinha a exata cronologia dos tempos, nem se conhecia a extensão do mundo, só reveladas depois das descobertas dos portugueses.
     
    O Juízo Final, tela a óleo de Peter Paul Rubens, 1617. O sentido de futuro de Vieira não pode ser descolado da leitura do Apocalipse bíblico. (Imagem: Reprodução/ original da antiga pinacoteca de Munique - Alemanha.)Vieira destaca a história de Portugal nesse plano mais vasto da criação até o juízo final – ou do juízo final até a criação (o que é o mesmo na perspectiva eterna de Deus). Propõe que os acontecimentos da nação portuguesa – sua origem, reis, guerras e descobrimentos – sempre foram planejados por Deus. E, portanto, profetizados na Bíblia, embora não tenham sido corretamente interpretados pelos padres e doutores antigos. Um exemplo é o do capítulo 18 de Isaías, até então, diz ele, indecifrado: “Ai da terra que tem navios com asas, que está além dos rios da Etiópia, que envia embaixadores por mar, e em vasos de juncos sobre as águas, a um povo terrível, uma gente que está esperando e é pisada, a quem os rios arrebataram a terra”. Para Vieira, “o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia”, e “não pode haver gente mais terrível entre todas as que têm figura humana do que aquela (quais são os Brasis), que não só matam seus inimigos, mas depois de mortos os espedaçam, os assam, os comem e os caçam a este fim (...) E esta gente e esta província mostraremos agora que é, com toda a propriedade, a que vulgarmente chamamos Maranhão (...) em toda aquela terra (em que os rios são infinitos e os maiores e mais caudalosos do mundo) quase todos os campos estão alagados e cobertos de água doce”. 
     
    A partir de sua experiência missionária nas regiões amazônicas, ele promove uma distinta interpretação alegórica da história. Sua obra – a de um jesuíta que prega a fé no Novo Mundo – surge como possível por ser conforme a vontade divina de animar as gentes a realizar os feitos que lhes estão profetizados e que ainda não se cumpriram. A própria redação da História do futuro é dada como possível por estar de acordo com o momento presente: é chegada a hora de, compreendendo-se as profecias, realizarem-se seus efeitos. A obra existe porque chegou seu tempo na ordem da salvação, e cabe aos homens agir conforme a mesma: “quando chega o tempo determinado e predefinido por Deus para que seus segredos se descubram e conheçam no mundo, só então, e de nenhum modo antes, se podem manifestar e entender (...) porque esta aventura não é privilégio dos entendimentos, senão prerrogativa do tempo”. 
     
    Em outras palavras: ele, Vieira, é o novo profeta dos novos tempos desse novo mundo. Se há profecia é porque, na trajetória humana, o futuro existe e tem uma razão de ser, da mesma maneira que o passado e o presente. E a compreensão da profecia é simultânea à aparição do mesmo futuro, por ser palavra de Deus, para quem o dizer e o fazer, o discurso e o decurso são uma só coisa, na ordem da eternidade. 
     
    Em termos humanos, o tempo futuro é semelhante e diferente do passado. Semelhante porque já prefigurado nos eventos históricos, diferente porque mais perfeito do que suas prefigurações. Num primeiro momento, é ainda um tempo linear, da Criação ao Juízo, mas em que o fim, o Quinto Império, é similar e mais perfeito do que o princípio, o Paraíso, repondo-o em suas perfeições inaugurais: um tempo sem guerra entre as gentes, sem lutas entre homens e animais, de grande longevidade e pureza para todos os seus habitantes. Uma nova idade do ouro.
     
    Mas num segundo momento, essa linha do tempo comporta um duplo sentido – do passado para o futuro mas também o contrário, por meio do esclarecimento das profecias, que retornam ao tempo zero, que é o presente. É nesse tempo presente que se exige dos portugueses que antevejam o futuro, para se constituírem como passados desse porvir anunciado. É no presente que Vieira escreve o futuro da história portuguesa, na qual se insere como intérprete que participa da razão da profecia e em que as descobertas da América e do caminho para o Oriente aparecem como limiares de um novo tempo. 
     
    O historiador-profeta-missionário que Vieira pretende ser aparece como coautor da obra divina: tanto aquele que escreve o futuro como aquele que o interpreta e que age para que se realize. A profecia é móbil da ação, numa concepção de história providencial em que o fim é aquele proposto por Deus e desejado pela humanidade. Por isso não faz dos homens seres involuntários cumpridores de um desígnio divino, mas exige-lhes coparticipação ativa na realização do plano providencial: antevendo o que serão, para que o sejam. 
     
    Adma Muhana é professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora de Os autos do processo de Vieira na Inquisição (Edusp, 2008). 
     
    Saiba Mais 
     
    AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira. Lisboa: Clássica, 1992.
    MENDES, Margarida Vieira. A oratória barroca de Vieira. Lisboa: Caminho, 1989.
    PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. São Paulo: Edusp, 1994. 
    SARAIVA, António José. O discurso engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.