- Vinte anos depois de sua morte, o padre Antônio Vieira tornou-se uma espécie de lenda. Uma ampla rede de copistas e leitores sustentava o tráfico clandestino dos escritos ainda inéditos do pregador. Seus discípulos tratavam de divulgá-los, preparando cópias manuscritas ou elaborando pequenos manuais sobre suas concepções. A grande mobilidade dos jesuítas fez com que esses escritos alcançassem leitores nas mais distantes regiões. Vieira inspirava e fascinava homens comuns. Transformava alguns, enlouquecia outros.Um dos leitores mais entusiasmados do padre português foi o jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Por volta de 1699, o santista ingressou no Colégio da Companhia de Jesus em Salvador, e ali vivenciou o clima de efervescência profético-milenarista que se formara em torno da obra de Vieira e seus discípulos. Tempos depois, conquistaria reputação em Lisboa como capelão da Casa Real e sócio da Academia Real das Ciências, protegido de D. João V. Ficaria célebre pela invenção da passarola, um balão de ar quente com o qual prometia voar pelos céus. Em 1724, porém, no auge de sua carreira, abandonou tudo e fugiu para a Espanha. A jornada durou 45 dias e culminou em sua morte trágica, vitimado por intensas febres, em meio a delírios proféticos.As únicas informações disponíveis sobre a infausta fuga provêm do diário escrito por seu irmão e companheiro de viagem, frei João Álvares de Santa Maria. Nele não há alusão aos escritos de Vieira, mas suas ideias sobre o Quinto Império estão por trás da profunda crise religiosa vivida por Gusmão, que se revela um homem dilacerado pela especulação profética. Interpretando as escrituras sagradas e desvendando os próprios sonhos, ele havia se convencido de que o fim dos tempos se aproximava e que cabia a ele, como o messias escolhido por Deus, anunciar a chegada da nova era. Graças à passarola, contava poder voar por todos os reinos do mundo, transformando-os num único império universal; ou, se fosse preciso, faria dela uma máquina de guerra para exterminar os que lhe resistissem.Enquanto Gusmão expirava, outro leitor de Vieira apresentava-se ao mundo como messias. O baiano Manuel Lopes de Carvalho havia estudado no Colégio da Companhia de Jesus, em Salvador, na mesma época que Gusmão, mas foi em Minas Gerais, quando era um modesto pároco da freguesia do Ouro Branco, que teve a maior revelação de sua vida: ele era o profeta do Quinto Império. Tudo começou quando caiu em suas mãos uma cópia manuscrita da Clavis Prophetarum – polêmico e inacabado livro de Vieira, censurado pelo Santo Ofício e jamais publicado. De passagem pela região, o jesuíta Antônio Correia não só lhe mostrou os papéis, como discutiu com ele o conteúdo. Diante da curiosidade do padre baiano, apresentou-lhe ainda um tratado manuscrito do jesuíta Mateus Faletti, que explicava as teses da Clavis Prophetarum. Manuel Lopes de Carvalho desembarcou em Lisboa em 1720 para avisar ao rei D. João V sobre a proximidade do Quinto Império. Preso pela Inquisição de Lisboa, defendeu ardorosamente as profecias de Antônio Vieira. Em 1726, depois de terem fracassado os teólogos chamados para dissuadi-lo de suas convicções, morreu queimado em um dos autos da fé mais concorridos daqueles tempos.É bem possível que a notícia da execução de um padre baiano na fogueira tenha atraído a atenção de outro leitor de Vieira que então circulava pelas ruas de Lisboa. O português Pedro de Rates Henequim havia passado os últimos vinte anos em Minas Gerais, onde descobriu a obra do jesuíta, consumindo-a a ponto de saber de cor longas passagens. Na paisagem montanhosa e íngreme de locais como Vila Rica, Itacambira e Sabará, encontrou sinais do Paraíso Terrestre descrito no Gênesis. Pôs-se então a redigir um livro de quatro volumes para demonstrar a tese de que o Quinto Império estava próximo e teria o Brasil como palco. Em sua obra, Henequim afirma que o português fora a primeira língua a ser falada no mundo, ensinada por Deus a Adão. Que a árvore da vida são as bananas compridas e a árvore da ciência, as bananas curtas, em cujas folhas há mensagens deixadas por Deus para toda a humanidade. Que Adão e seus descendentes eram índios, porque a palavra “adão” significa “vermelho”.De volta a Portugal, ocupou-se em divulgar as novas ideias, atraindo curiosidade, admiração e fama de maluco. Ainda assim, demorou quase vinte anos para a Inquisição notar a sua existência. Quando o fez, não lhe deu trégua. Capturado e preso, amargou mais de três anos no cárcere, enquanto os juízes daquele tribunal não conseguiam chegar a uma conclusão sobre a origem de suas crenças religiosas. Perplexos diante da apropriação bizarra que fizera das concepções de Vieira, convenceram-se enfim de que Henequim era um heresiarca – isto é, o iniciador de uma nova heresia – e o condenaram à morte. No auto da fé do verão de 1744, ele foi garroteado (isto é, estrangulado), seu corpo queimado e suas cinzas jogadas no rio Tejo.Enquanto isso, no Brasil, a obra de Vieira seguia o seu rastro pelos bastidores do mundo da leitura, cativando leitores e ensejando apropriações originais e inusitadas.Adriana Romeiro é professora na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais (Editora da UFMG, 2001).Saiba MaisAZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. Dois tomos. São Paulo: Alameda, 2008.GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso – cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.TAUNAY, Affonso d' Escragnolle. Bartolomeu de Gusmão: inventor do aerostato: a vida e a obra do primeiro inventor americano. São Paulo: Leia, 1942.VIEIRA, Antonio. Clavis Prophetarum. A chave dos profetas. Livro III. Edição crítica de Arnaldo do Espírito Santo. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2000.
Loucos por Vieira
Adriana Romeiro