A chegada do padre Antônio Vieira a São Luís do Maranhão, em 16 de janeiro de 1653, provocou uma grande inquietação entre os colonos. Eles temiam que o jesuíta restringisse o acesso à mão de obra indígena, a única disponível na época. Os boatos tinham razão de ser: três dias depois, no dia 19, um alvará concedeu a liberdade a todos os índios cativos. A medida fez eclodir uma revolta.
Logo a notícia chegou aos moradores de Belém, que forçaram o padre João de Souto Maior a assinar uma declaração reduzindo a margem de manobra dos jesuítas em matérias legais, limitando sua incumbência ao ensino da doutrina. Em resposta à agitação do povo, uma provisão régia de 17 de outubro daquele ano facilitou novamente as “guerras justas” contra os índios e, por consequência, sua escravização.O objetivo primeiro da vinda de Vieira era assumir a Missão do Maranhão que estava estagnada desde o naufrágio do primeiro superior, Luís Figueira, e as investidas holandesas no litoral maranhense, no início dos anos 1640. Em 1652, a Coroa decidiu viabilizar economicamente as possessões no Maranhão e Grão-Pará, e confiou aos jesuítas um papel de destaque na catequização e na administração dos índios, cujos conhecimentos e braços eram imprescindíveis para a coleta das “drogas do sertão” (cacau, cravo, baunilha, salsaparrilha e óleos vegetais, como andiroba e copaíba), o cultivo das lavouras e os transportes no labirinto de rios, lagos e selvas.Vieira, que havia servido durante 20 anos como confidente do rei D. João IV, resolveu, diante da resistência dos colonos, voltar a Portugal para mobilizar as autoridades em favor de uma definição mais precisa da “liberdade dos índios”. Visava também propiciar a evangelização desses numerosos povos e, em vista disso, sugeriu uma série de medidas: exclusão dos capitães de assuntos indigenistas, presença obrigatória de um sacerdote em todas as expedições, nomeação de “procuradores dos índios”, regulamento das condições e dos prazos de trabalho, inventário anual da mão de obra indígena e concentração dos nativos em aldeamentos, sob a administração exclusiva dos padres da Companhia de Jesus.Após meses de negociação em Lisboa, as propostas foram promulgadas sob forma de alvará régio, em 9 de abril de 1655. Esta lei instaurou a tutela dos jesuítas sobre todos os indígenas e possibilitou a expansão da rede de aldeamentos. Um ano mais tarde, Vieira relatava ao superior geral dos jesuítas: “Na conformidade desta resolução, estamos hoje de posse de todas as Aldeias de Índios já cristãos ou confederados com os Portugueses. Estão estas Aldeias em distância de quatrocentos léguas por costa, em 8 Capitanias diferentes, e posto que as distâncias sejam tão grandes e nós tão poucos, foi força dividirmo-nos logo a tomar posse de tudo”.Negociações concluídas, Vieira retornou à Amazônia, onde não somente incentivou a fundação de novas missões, como buscou regulamentar o convívio de padres e índios. Fez uma meticulosa visitação a todas as aldeias catequéticas e redigiu entre 1658 e 1660 a Direção do que se deve observar nas Missões do Maranhão, mais conhecido como Visita. Era um conjunto de normas práticas para estabelecer um “regime paternal”. A catequese matutina e vespertina marca, junto com os trabalhos nas roças e nas oficinas, o ritmo da vida cotidiana. Atenta a certas sensibilidades dos indígenas, a Visita prescreve a inclusão dos “principais” (líderes indígenas) no gerenciamento das aldeias e a realização de “bailes” nas vésperas dos domingos e feriados. O texto orienta os padres para que tenham cuidado redobrado com as pessoas mais vulneráveis, isto é, crianças (aulas elementares) e enfermos (visitas regulares). Para frisar seu papel de benfeitores, os religiosos eram categoricamente proibidos de levantar a mão contra os índios, deixar-se carregar em redes ou ter mais servidores do que necessário.Ao mesmo tempo, Vieira empenhou-se em dotar a Missão do Maranhão de uma infraestrutura eficaz. Buscou subsídios régios e tentou introduzir o conjunto das etapas da formação jesuítica – humanidades, noviciado, filosofia e teologia – mas não teve muito êxito. Em compensação, conseguiu aumentar o número dos missionários, tanto sacerdotes quanto coadjutores temporais (religiosos não ordenados), entre os quais muitos não eram portugueses. Ciente da solidão e dos perigos aos quais estavam expostos seus confrades, sobretudo os jovens e estrangeiros, o jesuíta buscou promover a coesão do grupo e estimular o zelo apostólico.Seu projeto de conversão dos gentios, em si, não era uma novidade. Ao contrário, sua argumentação embasa-se em reflexões e experiências feitas por outros jesuítas e intelectuais da época. Em relação aos aldeamentos, seguia o pensamento do padre português Manuel da Nóbrega (1517-1570), que exatamente cem anos antes, em seu Diálogo sobre a conversão do gentio, deu a estas “forjas da fé” o perfil de ambientes propícios para a sedentarização e a doutrinação. Antônio Vieira, no Sermão do Espírito Santo (1657), compara os índios à murta, um arbusto fácil de aparar, mas trabalhoso quanto à conservação da forma que lhe foi dada: “Há outras nações, [...] – e estas são as do Brasil – que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram”.
Embora a metáfora do arbusto realce a suposta inconstância dos indígenas, Vieira os considera maleáveis e dóceis, pois conforme a “teologia da graça”, então ensinada nos colégios da Companhia, os nativos da América seriam inteiramente aptos a receber a fé cristã. Esta corrente teológica, articulada pelo padre espanhol Luís de Molina (1535-1600), parte da universalidade e da incondicionalidade da graça divina, independente da condição cultural ou étnica. Além disso, Vieira confere aos índios a “soberania natural”, conceito formulado pelo jurista espanhol Juan de Solórzano Pereyra (1575-1653) e que reconhece a capacidade dos nativos de formarem sociedades organizadas. Os colonos não compartilhavam de tais convicções: Antônio Vieira acabou expulso do Maranhão em 1661.Apesar de defender a “liberdade dos índios”, o padre português não contestou, enquanto homem do século XVII, a instituição da escravidão. Argumentava apenas que, assim como a liberdade, ela deveria ser regulamentada. “Não é minha intenção que não haja escravos; antes procurei nesta corte, como é notório e se pode ver da minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta dos maiores letrados sobre este ponto, e se declarassem, como se declararam por lei, as causas do cativeiro lícito. Mas porque nós queremos só os lícitos, e defendemos [isto é, proibimos] os ilícitos, por isso nos não querem naquela terra, e nos lançam fora dela”, explica no Sermão da Epifania (1662).Apesar de sua intransigência no trato com os colonos e do caráter monopolista e expansionista de seu projeto missionário, Vieira marcou profundamente a formação da sociedade colonial na Amazônia lusa. Entre seus legados destacam-se a permanência quase secular (até 1757) da autonomia dos aldeamentos e da tutela dos índios. Esses princípios fundamentaram a experiência missioneira dos jesuítas, da qual descende grande parte da atual população ribeirinha da Amazônia, conhecida como caboclos.Karl Arenz é professor na Universidade Federal do Pará (UFPA).Saiba maisFRANCO, José Eduardo. Padre António Vieira: grandes pensamentos. Lisboa: Gradiva, 2008.MOTTA, Marcus Alexandre. Antônio Vieira: infalível naufrágio. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.VIEIRA, Antônio. Cartas do Brasil (1626-1697): Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará. Org. de João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003.VIEIRA, Antônio. Escritos instrumentais sobre os índios. Org. de José Carlos Sebe Bom Meihy. São Paulo: Giordano/Loyola, 1992.
Mão de obra da fé
Karl Arenz