Encontrar material que possa ser utilizado para elucidar as origens dos índios botocudos é uma tarefa bastante complicada. Os bioantropólogos, tanto os que investigam variações morfológicas quanto os que avaliam a constituição genética das populações, continuam procurando pistas da natureza biológica do grupo. Antropólogos, arqueólogos e linguistas também estão envolvidos no quebra-cabeça que é contar a história desses índios que ocupavam boa parte do interior do Brasil quando os portugueses chegaram.
A denominação “Botocudo” surgiu no século XVIII, e foi criada pelos colonizadores para se referirem aos nativos que usavam discos de madeira, adornados e trabalhados, nos lábios e nas orelhas – os chamados “botoques”. Esses índios, que faziam parte do grupo dos tapuias, também chamados de aimorés, viviam numa área que ia do Vale do Salitre, região onde hoje existe a cidade de Juazeiro, no norte da Bahia, até a área do Rio Doce, no sul de Minas Gerais. Inimigos tradicionais dos tupis-guaranis, que gozavam de maior “prestígio” junto aos colonizadores, logo se tornaram inimigos potenciais do homem branco, representando um difícil obstáculo para o desbravamento do interior.
Motivados por interesses econômicos, os conquistadores organizaram diversas missões e bandeiras e promoveram muitos massacres, apoiados por cartas régias que conclamavam guerra aos botocudos. Os conflitos foram tantos que essa nação indígena acabou se espalhando pelo Brasil, alcançando o interior dos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Esses grupos apresentavam as mesmas características físicas e culturais dos botocudos do Brasil Central, inclusive o dialeto.
A associação desses índios com o universo dos humanos que estariam há mais tempo no continente americano – os paleoíndios – não ocorreu à toa. Essa afirmação foi feita já nos primeiros estudos realizados pelos pioneiros da Antropologia Biológica brasileira. João Batista de Lacerda Filho (1846-1915) e José Rodrigues Peixoto, professores do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, iniciaram, no final do século XIX, uma série de estudos antropométricos que os levaram a sugerir que os índios botocudos eram descendentes diretos dos paleoíndios de Lagoa Santa. Trabalhos posteriores, desenvolvidos durante o século XX por Marília Carvalho de Mello e Alvim, rechaçaram essa conclusão, interrompendo momentaneamente a ideia de se estabelecer relações biológicas de ascendência e descendência entre esses grupos.
Mas, na passagem dos anos 1990 para os 2000, a equipe liderada pelo geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, constatou que um grupo pertencente ao distrito de Queixadinha – uma vila isolada, localizada no Vale do Jequitinhonha, região que fora ocupada pelos botocudos – apresentava um padrão genético diferente daquele que seria esperado em se tratando de linhagens maternas dos nativos daquela região. A partir dessas descobertas e das pesquisas desenvolvidas pela equipe liderada pelo bioantropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, a associação entre os aspectos biológicos apresentados pelos botocudos e pelos paleoíndios ressurgiu naturalmente.
Neves, que já havia desvendado as origens biológicas de Luzia – o esqueleto humano mais antigo já encontrado no continente americano –, disse, em um artigo de 2005, que “os botocudos são, para todos os efeitos, paleoíndios”. Na época, uma pesquisa de mestrado de autoria de João Paulo Vezzani Atuí, desenvolvida sob orientação do bioantropólogo, defendia que uma parcela dos nativos americanos que sobreviveram até o final do século XIX – como os índios botocudos – apresentava morfologia craniana semelhante à dos paleoíndios de Lagoa Santa, em oposição à tradicionalmente observada entre a esmagadora maioria dos americanos.
O mesmo grupo de estudiosos publicou, em março de 2011, uma pesquisa com 321 indivíduos de grupos indígenas brasileiros, como os guaranis, os tupis, os construtores de sambaquis e os índios amazônicos. Nela, os botocudos se mostraram fortemente associados aos paleoíndios de Lagoa Santa, mas isso não quer dizer que a história biológica desses índios ainda esteja perto de ser encerrada. Novas informações não param de vir à tona, deixando nítidas outras peças desse quebra-cabeça. Só resta saber onde procurar novas pistas.
Danilo Vicensotto Bernardoé pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e autor da dissertação “Afinidades morfológicas intra e extra continentais dos paleoíndios de Lagoa Santa: uma nova abordagem” (USP, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia
ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello; NEVES, Walter Alves (orgs.). Lapa das Boleiras – Um Sítio Paleoíndio do Carste de Lagoa Santa, MG, Brasil. São Paulo: Anna Blume, 2010.
NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Editora Globo, 2008.
PARAÍSO, Maria Hilda B. “Os Botocudos e sua trajetória histórica”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros – a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
Saiba Mais - Internet
Museu Nacional
Museu de Arqueologia e Etnologia
O nome da tribo
Danilo Vicensotto Bernardo