Os primeiros da fila

Astolfo Gomes de Mello Araujo

  • Os sítios arqueológicos mais recentes indicam que os seres humanos possivelmente chegaram à América há mais de 50 mil anos. É o que fazem crer as escavações feitas por Fabio Parenti, arqueólogo italiano da equipe de Niède Guidon, no Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí. As medições de tempo feitas a carvão na região foram motivo de polêmica, mas outros métodos de datação, como a luminescência, jogaram ainda mais lenha na fogueira, acusando idades ainda mais antigas. O sítio de Santa Elina, no Mato Grosso, também apresentou vários indícios de ocupação humana antiga, incluindo ornamentos feitos a partir de osteodermas (placas ósseas localizadas sob a pele) de preguiça-gigante, além de artefatos de pedra lascada com idades beirando os 25 mil anos.

    Mas, para estudar a chegada dos primeiros seres humanos à América, é preciso remeter à pré-história, quando caçadores de grandes mamíferos vagavam por toda parte. Os que viviam na América do Norte perseguiam mamutes e bisões e vêm sendo definidos pela Arqueologia como paleoíndios. O Brasil e o resto do continente sul-americano também se valem do mesmo termo para classificar nativos que andavam pelas terras abaixo do Equador no mesmo período.

    As primeiras reconstituições feitas pelos norte-americanos conferiram a seus paleoíndios características extremamente asiáticas, como se eles fossem índios dos tempos de hoje, parecidos com figurantes de filme de faroeste ou esquimós. Mas, na verdade, os pouquíssimos crânios disponíveis na América do Norte sugerem que esses nativos pouco tinham a ver com os índios atuais, de características predominantemente mongoloides.

    O mesmo pode ser dito sobre os muitos crânios sul-americanos dessa época, que mostram uma morfologia totalmente distinta da que é apresentada hoje. Outra diferença grande é que os paleoíndios do leste da América do Sul caçavam animais de médio a pequeno porte. Ao contrário do que acontecia no Norte, os do Sul pareciam evitar qualquer aproximação com os grandes mamíferos extintos, apesar de ter havido coexistência entre seres humanos e esses animais.

    Os paleoíndios norte-americanos são tidos como portadores de uma tecnologia bem específica, relacionada à manufatura de pontas lascadas em ambas as faces, conhecidas como “bifaciais” – não se sabe se eram de flechas, lanças ou dardos. As pontas mais antigas eram chamadas de Clovis, e deram nome a um povo que reunia, supostamente, os primeiros humanos a entrar nas Américas. Eles vinham no encalço dos mamutes e cruzavam o estreito de Bering – que ligava a Ásia à América, da Sibéria ao Alasca – toda vez que o mar baixava. Convencionalmente, os estudiosos se referem a eles como “Clovis First”.

    Já as bifaciais mais antigas da América do Sul nada têm a ver com as pontas Clovis ou com as norte-americanas que vieram depois, o que complica a vida dos arqueólogos que defendem o modelo ClovisFirst. Isso fragiliza a ideia de que exista uma relação de ancestralidade entre Clovis e as pontas sul-americanas. Como se não bastasse, há uma ampla região da América do Sul, que ocupa 48% do continente, da qual ainda se conhece pouco da pré-história: o Brasil.As pedras lascadas encontradas em território brasileiro são totalmente diferentes de qualquer outro modelo e são comumente associadas a uma cultura chamada Umbu, encontrada no sul e no sudeste do país.

    À medida que foram feitos mais estudos, foi ficando mais claro que havia várias culturas antigas e contemporâneas no leste da América do Sul, e que algumas delas não envolviam o lascamento de pontas, mas sim de artefatos que seriam “raspadores”, lascados de maneira unifacial. Ou seja, a forma da peça era dada por uma série de pequenos retoques feitos em apenas uma das faces. Essa cultura arqueológica, cujos vestígios foram localizados nas regiões Nordeste e Centro-Oeste, acabou sendo denominada Itaparica.

    Mais recentemente, ficou claro que ainda havia uma terceira cultura, contemporânea às anteriores, presente em Lagoa Santa, Minas Gerais, mas também em vários outros sítios arqueológicos ao norte, chegando até a Bahia. Denominada Lagoassantense, ela não produzia qualquer tipo de artefato formal, apenas lascas de quartzo espatifadas a partir de cristais, e utilizadas praticamente in natura, às vezes com alguns pequenos retoques.

    Se os sítios Clovis mais antigos têm 13.200 anos, como se explica toda essa variedade cultural na América do Sul há meros 12.300 anos? Claro que nem estamos entrando no mérito de que foi encontrado um sítio pré-Clovis chamado Monte Verde, no Chile, com 13.500 anos. Curiosamente, não há quase pontas Clovis ou derivadas no local onde se esperaria encontrar a maior quantidade delas, ou seja, onde desembocaria o corredor livre de gelo no estreito de Bering. Pelo contrário, a maioria delas está no leste dos Estados Unidos. Uma das explicações recentemente formuladas para isso se baseia no fato de que a cultura Clovis é um desdobramento da cultura Solutrense, presente na Europa Ocidental. Ou seja, Clovis seria uma técnica de lascamento eminentemente europeia, em nada semelhante às asiáticas.

    O problema é o hiato temporal entre ambas, já que a cultura Solutrense acaba por volta de 18 mil anos atrás, cinco mil antes do surgimento das primeiras pontas Clovis. Segundo este modelo, Clovis não representaria a primeira leva de humanos a habitar a América do Norte, mas, talvez, a mais visível. Teria vindo do Leste, e não do Oeste, e não teria descido rumo ao Sul e colonizado o resto do continente. O fato é que, a cada descoberta, a compreensão sobre como se deram essas migrações é mais nebulosa. Ainda que existam evidências espalhadas por toda a extensão do continente americano – muitas delas ainda por serem descobertas –, a tendência é que haja mais hiatos de milhares de anos entre uma e outra revelação.

     

    Astolfo Gomes de Mello Araujoé professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e autor de Lapa das Boleiras – Um Sítio Paleoíndio do Carste de Lagoa Santa, MG, Brasil(Annablume/Fapesp, 2010).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    NEVES, W. & PILÓ, L.B. O Povo de Luzia: Em Busca dos Primeiros Americanos. São Paulo: Editora Globo, 2008.

    PESSIS, A.M. “Pré-História da Região do Parque Nacional Serra da Capivara”. In: TENÓRIO, Maria Cristina (ed.). Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999.

    VIALOU, A. (ed.). Pré-História do Mato Grosso: Santa Elina (Vol.1). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.