O tempo estava bom para mais um dia de trabalho no cerrado do sul de Goiás. Mas quando um grupo de dez pessoas viu uma nuvem se aproximar, não deu pra correr. Ela não anunciava chuva, e sim abelhas. O enxame chegou tão depressa que a única solução foi a equipe se jogar no chão para esperar os insetos passarem. Depois, em outra ocasião, em Itaguaí, no interior do Rio de Janeiro, tudo parecia tranquilo numa fazenda quando, de repente, um boi bravo disparou para atacar os trabalhadores. Desta vez, a carreira foi grande. Cada um correu para um lado, e foram pulando cerca, sem se preocupar com o que estavam deixando pra trás: mochilas, lanches, ferramentas...
Sufocos como estes são bem possíveis na rotina dos arqueólogos, que encaram essas dificuldades com certa naturalidade. Antônio Souza, que escapou das abelhas e do boi, chega a justificar o comportamento dos animais com um tom bastante compreensivo: “É que a vaca estava no cio, por isso o macho ficou nervoso daquele jeito, parecendo até um boi de rodeio”, explica ele, que integra a equipe do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB). Não faltam histórias de pesquisa em campo no repertório de “causos” de Antônio. O motivo é simples: não tem faltado trabalho para ele.
A pesquisa que está sendo desenvolvida em Itaguaí, por exemplo, é parte do trecho, de cerca de 72 quilômetros, do projeto de construção da rodovia Arco Metropolitano, que ligará a estrada Rio-Bahia à Rio-Santos. Iniciado em 2009, o estudo já havia resgatado, até o término desta edição, 36 sítios arqueológicos. Estima-se que este número chegue a 60 até a conclusão das obras, prevista para 2012. “A maioria dos sítios é datada do séculos XVI ao XIX. Há também muitos vestígios de aldeias tupis-guaranis e sambaquis de até seis mil anos”, conta Jandira Neto, diretora do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), organização não governamental responsável pelas pesquisas desta empreitada.
A equipe não saiu para investigar o local por acaso. A ONG foi contratada pela Secretaria de Obras do Estado do Rio de Janeiro, parceira do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes no projeto. Outro cliente do IAB no momento é o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que planeja fazer obras em Paraty-Mirim, também no Rio de Janeiro. Assim, com um freguês aqui e outros ali, a instituição recebe um número crescente de empresas de fora do Rio dispostas a contratar seus serviços – do Espírito Santo, de Tocantins, do Amazonas e de Minas Gerais. Como o IAB, outras organizações dedicadas à Arqueologia são procuradas por todo o país por grandes companhias dispostas a realizar novas edificações.
Esse interesse todo não foi um despertar repentino da sociedade para a memória de nossos antepassados. A necessidade é outra: cumprir a lei federal que determina o estudo prévio dos sítios arqueológicos em caso de atividades que possam destruir total ou parcialmente esse patrimônio. O regulamento é antigo, de 1961, e foi bem-vindo na Constituição de 1988, que citou os achados arqueológicos como parte do patrimônio cultural brasileiro.
Mas o salto das pesquisas arqueológicas preventivas ou “de contrato” veio no bojo da Política Nacional de Meio Ambiente. Em 1986, o Conselho Nacional do Meio Ambiente publicou uma resolução que obriga os estudos de impacto ambiental a desenvolverem atividades técnicas que contemplem “os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade”.A partir desta decisão, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tomou partido, e, em 2002, lançou mão da portaria nº 230, que detalha a finalidade das pesquisas a serem realizadas durante as diferentes fases de licenciamento de uma obra.
“A lei de 1961 não tinha um sistema de proteção. O órgão de proteção atuava, mas não era uma aplicação ampla para alcançar todo o território; ele funcionava a partir de denúncias. Os instrumentos elaborados para a obtenção de licenciamento ambiental acabaram potencializando a legislação porque foi criado um sistema de controle”, diz Maria Clara Migliacio, diretora do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan. Os instrumentos a que ela se refere são, principalmente, o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental, que devem ser submetidos à aprovação de órgãos estaduais e ao Ibama. Se esses documentos não incluírem os estudos arqueológicos, não adianta apelar: a autorização não sai. E é aí que o mercado de trabalho para arqueólogos cresce. Em 1991, o Iphan aprovou a realização de cinco pesquisas arqueológicas; em 2010, esse número disparou para 969, um aumento de mais de 19.000%. Para este ano, estimam-se, no mínimo, mil registros.
O volume de investigações arqueológicas no Brasil está surpreendendo também no exterior. “Há uma certa admiração diante do que está sendo feito aqui. Essa quantidade de pesquisas causa espanto. Países que são mais desenvolvidos na área, como o México, que se baseia no turismo arqueológico, teve duzentos estudos no ano passado, bem menos que aqui”, diz Maria Clara.
Esse crescimento é proporcional à quantidade de obras que estão sendo feitas. À medida que o país cresce e realiza grandes obras – como as do Plano de Aceleração do Crescimento –, aumenta o número de pesquisas. Segundo o Iphan, hoje a pesquisa acadêmica representa de 5% a 7% do total de estudos arqueológicos. Todo o restante é provocado pelo licenciamento ambiental.
A fartura de sítios arqueológicos em Minas Gerais é um exemplo de como as pesquisas têm avançado. Tanto que o Iphan está lançando um mapa com a localização de 1.067 sítios. Pinturas rupestres, urnas funerárias e cerâmicas tupis-guaranis são os principais materiais resgatados nesses locais. O curioso é que isto representa quase 2% do potencial do estado. Para o arqueólogo Alexandre Delforge, que coordena o projeto de mapeamento, os outros 98% estão em áreas ainda desconhecidas. “Muitas vezes, isso acontece por causa da falta de interesse acadêmico em determinadas regiões”, suspeita Delforge, que está otimista com relação ao futuro de sua profissão: “Hoje falta arqueólogo”.
Cristiane Machado, proprietária da empresa de consultoria em arqueologia Rhea, no Espírito Santo, compartilha desse otimismo e considera que sua área de trabalho deu uma reviravolta nos últimos 20 anos. “Quando eu decidi fazer Arqueologia, todo mundo me chamava de doida; as pessoas achavam que eu não ia conseguir trabalho. Eu me considero integrante de uma geração privilegiada de arqueólogos, porque quando me formei, em 1985, não havia esse boom de projetos. Naquela época, só se fazia Arqueologia por amor”, lembra Cristiane, que hoje tem em seu histórico de clientes empresas como Vale e Alphaville Urbanismo.
Superada a fase de conquistar um espaço no mercado de trabalho, a arqueóloga está engajada em outra luta: a da regulamentação da profissão. “Sofremos uma decepção com relação a isso. Um projeto de lei chegou a ser aprovado pelo Congresso Nacional, mas acabou sendo vetado”, conta Cristiane, que também integra a Sociedade Brasileira de Arqueologia. O veto foi feito pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, mas os arqueólogos não desistiram.
Atualmente há outro projeto de lei, de 2007, tramitando no Congresso. A insistência na reivindicação, segundo Cristiane, está relacionada à necessidade de se zelar pela qualidade das pesquisas. “É que, com o aumento de trabalhos nessa área, pode haver muitos aventureiros se passando por arqueólogos. E isso é muito grave porque, se uma pesquisa é feita sem aprofundamento para uma construtora, por exemplo, nunca se vai saber se naquele local havia ou não um sítio”, alerta a arqueóloga.
Enquanto a regulamentação não sai, a Sociedade Brasileira de Arqueologia estima que cerca de 700 profissionais estejam em atividade no país. Em artigo publicado pela Sociedade em 2010, o arqueólogo Paulo Zanettiniinformou a existência dez cursos de graduação no país, seis de especialização lato sensu e seis voltados para a formação stricto sensu. Desse total, onze foram criados entre 2008 e 2010. Quanto à qualidade dessas formações, Zanettini indica que há uma preocupação com a “completa falta de embasamento teórico-metodológico de boa parte dos pesquisadores envolvidos no processo”.
O maior problema é que, se há profissionais displicentes atuando nessa área, talvez nem o tempo consiga confirmar. Mas, para os bons arqueólogos, uma coisa é certa: fazer um serviço superficial significa perder o melhor do ofício, que é ir até o fim da pesquisa, nem que seja preciso enfrentar bois bravos. Ou, usando uma breve definição da arqueóloga Maria Clara Migliacio, seria perder a chance de “trazer de novo à vida povos que estão ficando no esquecimento”.
Um campo imenso
Vivi Fernandes de Lima