Se Deodoro da Fonseca, em vez de proclamar a República tivesse sido preso por conspiração contra a monarquia, D. Pedro II se veria diante de um personagem pouco conhecido no Segundo Reinado (1840-1889): o preso político. Isto não aconteceu, mas o início da República foi marcado por tensões que levaram muitos para trás das grades.
Com as elites políticas, o novo governo parece ter sido mais generoso: os defensores do Império, tendo à frente o visconde de Ouro Preto, não ficaram presos por muito tempo, sendo alguns enviados para o exílio, mesmo destino da família imperial. Mas no caso das lideranças monarquistas, a expatriação seria revogada um ano depois. O temor do levante dos negros em defesa da princesa libertadora, Isabel, também justificou a dura repressão aos capoeiras, realizada de forma inteiramente arbitrária. Aproveitando o vazio constitucional provocado pela conjuntura revolucionária, o chefe de Polícia deportou muitos acusados de capoeiragem para a ilha de Fernando de Noronha. A voz do advogado Alberto de Carvalho levantou-se, isolada, para defendê-los. Mas quase todos glorificaram o chefe de Polícia, o jacobino Sampaio Ferraz, e a deportação dos capoeiras.
As disputas pelo poder geraram cisões e conflitos que provocaram a renúncia do marechal Deodoro em 1891, colocando à frente do governo um contestado vice-presidente, o marechal Floriano Peixoto (1839-1895). A breve passagem de Floriano pelo topo da elite política brasileira durante três anos, seguida de sua morte, em 1895, tornou-o uma esfinge, difícil de ser explicada. Homem habituado ao mando militar, não hesitou em usar a força e reprimir quem se opusesse, numa postura enérgica que lhe conferiu a alcunha de “Marechal de Ferro”.
Euclides da Cunha (1866-1909) e Lima Barreto (1881-1922) chegaram a escrever sobre o governante. No romance Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), Lima Barreto retrata o período: “Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana. Os funcionários disputavam-se em bajulação, em servilismo... Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem responsabilidades...”.
Reunindo militares e civis jacobinos – republicanos radicais que defendiam um governo centralizador e forte –, o grupo de Floriano agiu rápida e energicamente para levar seus opositores à prisão. Os repressores acreditavam estar representando a vontade do “povo”. Para Floriano, isso agradaria à população urbana – como funcionários públicos e trabalhadores do comércio –, favorável ao novo regime, que via no líder uma afirmação dos princípios da República. O presidente se tornaria o herói jacobino, aclamado na agitada capital federal.
No entanto, muitas forças se opunham a Floriano. Sua posse era questionada pelo fato de o marechal Deodoro ter renunciado com menos de dois anos de governo. Nesse caso, seriam necessárias novas eleições, segundo a Constituição de 1891. Floriano se apegava às disposições transitórias, que diziam que o primeiro mandato seria de quatro anos. Optando pelo enfrentamento tanto na esfera civil como na militar, desterrou inúmeros adversários para o Norte do país e mandou prender vários outros, como o poeta Olavo Bilac (1865-1918), que havia criado o jornal antiflorianista O Combate e passou quatro meses na prisão. Depois de solto, ele foi forçado a deixar o Rio de Janeiro.
Floriano teve que lidar com a Revolução Federalista (1893-1895) no Sul do país e com a Revolta da Armada (1893-1894) no Rio de Janeiro. Com ele combateram batalhões patrióticos de ferozes defensores da República e seus admiradores. Viam inimigos em toda parte e estavam prontos para reprimi-los e conduzi-los à prisão. No Rio, a Casa de Correção, inaugurada em 1850, teve que abrir espaço para esse novo tipo de criminoso: o inimigo da República. Era uma experiência inédita para os dois lados: “homens bons” da sociedade atirados nas celas por disputas políticas, indignados com o tratamento que recebiam; e administradores de prisão que tinham que lidar com tipos diferentes daqueles com os quais estavam acostumados. A Constituição previa que prisioneiros durante o estado de sítio – quando várias garantias políticas eram suspensas – seriam colocados em lugares separados dos réus de crimes comuns. Mas as prisões militares logo ficaram cheias, e não havia outros espaços. Monarquistas e republicanos, militares ou civis, ocupavam as celas malcheirosas, de onde os criminosos comuns e pobres haviam sido retirados às pressas. Mesmo com posições políticas distintas, estavam unidos contra Floriano.
Mas esta oposição também poderia mudar de lado. Foi o que aconteceu com um dos presos, o militar republicano Serzedelo Correia (1858-1932). Quando leu o manifesto do almirante Saldanha da Gama (1846-1895), um dos líderes da Revolta da Armada, indignou-se. Como muitos outros, interpretou o manifesto como declaração monarquista, inaceitável para seu republicanismo. Afirmou preferir estar ao lado de Floriano quando a República se encontrava ameaçada. Em outros momentos, todos se uniram para enfrentar os perigos da prisão: o controle permanente e a possível presença de espiões. Presos de posição social inferior tornaram-se logo objeto de suspeita. Eles poderiam ter sido colocados ali pelo governo para agir como informantes. Verdade ou não, o preconceito e a desconfiança os isolavam.
Os protestos contra o estado em que se encontravam perturbaram a rotina da Casa de Correção. Em condições precárias de saúde, o já idoso barão de Santa Tecla, Joaquim da Silva Tavares (1830-1900), teve que ser removido. O general Honorato Caldas assumiu a liderança nos protestos, exigindo melhor alimentação e mais liberdade de movimentos. Ele confrontou o diretor da prisão, que, para evitar esse tipo de conflito, preferiu não aparecer na galeria dos presos políticos. Devia ser tarefa nada agradável tentar se mover entre a vigilância do governo e o radicalismo de alguns de seus militantes. Por outro lado, estavam ali homens outrora poderosos, que mesmo caídos em desgraça poderiam voltar a ter poder e promover retaliações. Enquanto isso, em outros lugares da República, a violência do governo de Floriano chegava a provocar mortes, como os fuzilamentos em Santa Catarina [Ver “Cadeia era pouco”, p. 21]
O florianismo marcou época e dividiu opiniões. Olavo Bilac, que era contra o governo, era amigo do também escritor Raul Pompéia (1863-1895), ardoroso jacobino. Logo se tornaram adversários e se afastaram. Muitos trataram a lembrança das prisões políticas como marcas de heroísmo. Outros, como os monarquistas, viam-nas como exemplo dos horrores do regime republicano. Barões, generais, almirantes e advogados viram a prisão por dentro. A repressão a um grupo tão elevado na sociedade brasileira demoraria muito a se repetir.
Alguns escritores transformaram o clima de revolta e perseguição política no Rio de Janeiro em cenário de histórias leves. Como o poeta e dramaturgo Artur Azevedo (1855-1908), que escreveu sobre uma família que sobe o morro do bairro de Santa Teresa para ver do alto os conflitos da Revolta Armada e ainda fazer um piquenique. Ou o cronista João do Rio (1881-1921), autor do livro Dentro da noite (1911), que conta a história de Arsênio Godard, cidadão francês que passava informações ao governo. Capturado e feito prisioneiro em um navio, foi punido pelo comandante com o silêncio: nenhum tripulante falaria com Godard. Depois de 69 dias circulando pelo navio sem que ninguém lhe dirigisse a palavra, ele se matou. Começava a aparecer a figura monstruosa da tortura.
Marcos Luiz Bretas é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coautor de História das Prisões no Brasil (Rocco, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
MAIA, Clarissa Nunes et alii. História das prisões no Brasil, 2 vols. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
PENNA, Lincoln de Abreu. O progresso da ordem. O Florianismo e a construção da República. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da República. São Paulo: Brasiliense, 1996.
Prisões em série
Marcos Bretas