De Marajó para o mundo

Gunter Karl Pressler

  • Nascido na Ilha de Marajó, no leste da Amazônia, um menino de cerca de 11 anos tem o desejo de ganhar o mundo. A criança é Alfredo, protagonista da saga escrita pelo paraense Dalcídio Jurandir (1909-1978), considerado por muitos o maior romancista do Norte do Brasil.

    Somando as atividades de jornalista com as de escritor, a dedicação de Dalcídio às letras corresponde a cinquenta anos. Do ponto de vista da produção literária, sua carreira abrangeu o movimento dos modernistas, passando pelo auge do romance social dos anos 1930 até bem além das experiências da poesia concreta e do romance que mudou a história e a crítica da literatura brasileira, Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa. O escritor se deteve em narrar os sonhos de uma sociedade. Como ele mesmo disse, os temas de seus romances “vêm do meio daquela quantidade de gente das canoas, dos vaqueiros, dos colhedores de açaí”.

    Sem escolaridade completa, Dalcídio Jurandir, filho de pai descendente de portugueses e de mãe descendente de escravos, tentou a sorte como viajante clandestino para o Rio de Janeiro aos 19 anos. Depois de um ano, voltou ao Amazonas e conseguiu emprego como funcionário municipal em Gurupá (PA), onde escreveu seu primeiro esboço de romance (1929). O trabalho foi de curta duração por causa das mudanças políticas implantadas pelo regime populista de Getulio Vargas (1930-1945), que institui em 1937 a ditadura do Estado Novo.

    Sob dificílimas condições econômicas e geográficas, Dalcídio encaminhou, em 1940, o manuscrito do primeiro romance, Chove nos Campos de Cachoeira, para o concurso literário da revista Dom Casmurro, do Rio de Janeiro. Totalmente desconhecido, ganhou o prêmio, e com o romance Marajó (escrito na década de 1930), conseguiu ainda o terceiro lugar. Com a publicação do romance premiado, em 1941 Dalcídio se mudou definitivamente para o Rio, onde trabalhou como jornalista e escritor. Ele conseguiu conquistar vários prêmios literários, e em 1972 recebeu, das mãos de Jorge Amado, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra.

    Raramente o leste da Amazônia e a maior ilha fluvial do mundo, Marajó, são lembrados quando se trata de seus valores culturais e literários. São poucos os poetas e romancistas que se destacaram em épocas passadas, caso de Henrique João Wilkens (1736-1800), Lourenço da Silva Araújo e Amazonas (1803-1864), e Inglês de Sousa (1853-1918). Foi só no século XX que um número maior de autores da região amazônica – Bruno de Menezes (1893-1963), Thiago de Mello, Márcio Souza, Max Martins (1926-2009) e Milton Hatoum – foi inserido no contexto da literatura brasileira. Entre estes, Dalcídio Jurandir ocupa um lugar de honra.

    A obra que consagrou o autor foi o Ciclo do Extremo Norte, que reúne dez de seus onze romances: Chove nos Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947) Três Casas e um Rio (1958), Belém do Grão Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1967), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976)e Ribanceira (1978). Jurandir escreveu suas histórias contra o trauma do declínio da Região Norte, que viveu momentos de luxo durante o auge da borracha, no final do século XIX, quando Belém se imaginou como “Paris d’América”.

    Alfredo, a figura central da trama de Dalcídio, quer sair de Marajó e estudar na grande cidade. Por outro lado, seu meio-irmão, Eutanázio, havia voltado recentemente da metrópole, para onde fora em busca de trabalho e independência, e vive a desilusão do fracasso, vagando sem rumo na perspectiva de que irá “morrer sem aceitar a morte, sem ter aceitado a vida”.

    O traço mais marcante da personalidade de Alfredo está justamente na ansiedade gerada por duas opções de vida antagônicas: ficar no mundo interiorano, ilhado do resto do mundo, ou partir para viver a realidade da cultura urbana. Jurandir expressa bem esse conflito em algumas passagens de Chove nos Campos da Cachoeira (1941): “Indagava por que os campos de Cachoeira não eram campos cheios de flores, como aqueles campos de uma fotografia de revista que seu pai guardava. Ouvira Major Alberto dizer a D. Amélia: campos de Holanda. Chama-se a isso prados”.

    O segundo trabalho de Jurandir, Marajó, embora faça parte da saga, que se passa entre 1920 e 1930, narra fatos anteriores ao primeiro livro. Sua trama se desenrola no ambiente social dos latifundiários e aborda a relação cheia de conflitos entre o pai fazendeiro – coronel Coutinho – e o filho herdeiro, que num primeiro momento, quando não demonstrava nenhuma vontade de assumir a herança paterna, se perde em aventuras amorosas e “socialistas”. Dessa forma, o autor denunciava a estrutura social, que se mostrava imóvel havia séculos, diante dos desafios econômicos e democráticos que a sociedade vivia no início do século XX. Marajó deve ser lido como introdução à saga de Alfredo, que tem início com Chove nos Campos de Cachoeira.

    Os conflitos vividos pelo personagem o levavam a ter muitas inquietações noturnas: “Alfredo acorda com aquela cidade cheia de torres, chaminés, palácios, circos, rodas giratórias que lhe enchem o sonho e o carocinho. De olhos abertos para o telhado, pensa na sua ida para Belém. Seu grande sonho é ir para Belém, estudar”.

    No final de Três Casas e um Rio, a tentativa de fugir fracassa; Alfredo viaja finalmente para Belém no quarto romance. Em Belém do Grão Pará começa a sua formação, período esse que tomaria toda a sua adolescência e juventude. Lá, Alfredo vai morar com a família dos Alcântara, cujo declínio social ele assiste de perto.

    Aos poucos, os livros seguintes da saga vão ganhando um aspecto mais psicológico, tanto por conta das memórias da infância na ilha quanto pelas contradições sociais que o protagonista vivencia. Em Passagem dos Inocentes, Alfredo consegue passar para o ginásio. Mas várias mudanças de residência viriam nos anos seguintes, e o levam cada vez mais para a periferia da grande cidade. As condições urbanas e sociais mudam a vida de Alfredo, marcam a sua juventude, por conta de sensações simultâneas de alívio e angústia. Ele só reencontra os parentes e os amigos de infância nas férias na ilha. Na cidade, Alfredo é o menino pobre do interior, e na Ilha, é o rapaz da cidade. Como uma parente interroga: “Grandes coisas, chegares da cidade. A cidade de que vens te emproando? Que tenho eu com o teu estudo?”

    As experiências da vida e da escola são focos dos romances Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971) e Os Habitantes (1976). Frequentar o ginásio, a essa altura, já era um martírio para o rapaz, até porque ele tem muita dificuldade para adquirir uma roupa adequada – por exemplo, o uniforme escolar. Dalcídio Jurandir apresenta e descreve os acontecimentos como se Alfredo estivesse, efetivamente, formando o seu caráter. A trama segue, a realidade social se torna mais dura, e a questão de ganhar dinheiro passa a ser uma necessidade, embora o desejo de uma boa formação continue. Surge então, no horizonte do jovem, o sul do país, situação que o obriga a se deparar com a possibilidade de ingressar em um curso politécnico ou na Escola de Agronomia de Piracicaba. Mas, para atingir essa meta, ele precisaria de contatos, como o deputado que surge em Chão dos Lobos.

    Sem rumo, Alfredo parte e vai tentar a sorte no Rio de Janeiro. Ele imaginara que o objeto mágico, o caroço do tucumã, “iluminava o mundo”, mas novamente constata que a grande cidade não permite magia. No final do romance, ele vaga com seus pertences pela cidade e, de repente, encontra um fazendeiro de sua terra: “lá do rio de cima. Ele mesmo! [...] – O senhor pode já-já me pagar a passagem de volta? Lá lhe saldo. Pode? Corre no cais, um cargueiro, pulou a bordo”. Depois de se aventurar no Rio de Janeiro, ele volta, aos 20 anos, para o Pará, onde assume a função de secretário do município, na ribanceira do grande rio. No último romance do Ciclo, Ribanceira, Alfredo desembarca na beira do Amazonas, mas como alguém bem-sucedido, e não como um anônimo qualquer. No entanto, a conjuntura política não permite uma permanência. O ano era 1930, no início do governo Getulio Vargas. Na imaginação de Alfredo, o Santo diz: “te desengana, meu filho, que não faço milagres”.

    Embora esses fatos sejam uma ficção muito próxima da vida real do autor da década de 1920, milhares de jovens vêm repetindo essa história até hoje: saindo cedinho, pegando o barco que percorre o labirinto dos rios e furos da região amazônica, contornando centenas de ilhas, até que, de repente, emerge a silhueta da grande cidade: “cheia de torres, chaminés, palácios...”.

     

    Gunter Karl Pressleré professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Pará e autor de “O Maior Romancista da Amazônia: Dalcídio Jurandir e o Mundo do arquipélago de Marajó”. In: BOLLE, W. et al. (Org.). Amazônia. Região Universal e Teatro do Mundo (Globo, 2010).

     

    Saiba mais - Bibliografia

    ASSMAR, Olinda B. Dalcídio Jurandir: um olhar sobre a Amazônia. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2003.

    Bogéa, José Arthur. Bandolim do Diabo (Dalcídio Jurandir: Fragmentos). Belém: Paka-Tatu 2003.

    NUNES, Benedito, PEREIRA, Ruy, PEREIRA, Soraia R. (orgs.). Dalcídio Jurandir, o Romancista da Amazônia. Literatura & Memória. Belém/Rio de Janeiro: Secult/Casa de Rui Barbosa, 2006.

    Saiba Mais - Internet

    www.dalcidiojurandir.com.br