A escravidão negra nas Américas não foi uniforme. Do século XV ao XIX, uma enorme quantidade de africanos foi alocada pelo tráfico negreiro nos territórios americanos que estavam sob controle dos impérios europeus. Por causa dessa imigração forçada, cerca de 400 mil cativos foram enviados para as colônias da América inglesa, 1,6 milhão para a América espanhola e 3,6 milhões para a América portuguesa. Levando em conta a intermitente ação do contrabando, chega-se a um total estimado de 10 milhões de pessoas. Tanto na América do Norte quanto no Brasil, a escravatura sobreviveu ao fim do mundo colonial e soube se ajustar às formas de governo que os dois Estados politicamente soberanos, constituídos após a independência, adotaram para si.
O desenvolvimento da escravidão no contexto republicano criou graves impasses nos Estados Unidos. A própria ideia de república pregava uma ampliação da igualdade política e condenava, por princípio, a existência de “diferentes condições de gente” e a manutenção de seus privilégios. Na prática, porém, o país teve que conviver com a exploração de cativos. Expressando os arranjos políticos entre os estados livres e os escravistas, modificações sutis foram feitas na Carta Constitucional (1787). A mais conhecida foi a chamada “cláusula dos três quintos”, segundo a qual os escravos – sempre numerosos nos estados sulistas –, apesar de serem “propriedade”, poderiam ser contados como pessoas. Isto é, cada escravo valia “três quintos de um homem branco”, para efeito de cobrança de impostos e de representação no Congresso.
A tensão entre os defensores e os opositores da escravidão aumentou algumas décadas depois e tomou as ruas, como nas revoltas antiabolicionistas da década de 1830, ocorridas nas principais cidades do Norte. Também foram frequentes as perseguições aos trabalhadores negros livres e libertos nas cidades portuárias do Sul, como Richmond e Charleston – especialmente nas épocas de crise, quando a massa de homens brancos pobres os via como usurpadores dos seus empregos. No Império do Brasil, aceitava-se com muita naturalidade a existência de “diferentes condições de gente” na sociedade e a valorização de privilégios para poucos. A manutenção de uma hierarquia social herdada da colônia inviabilizava, por princípio, a ideia de uma igualdade política para todos.
Nas décadas de 1780 e 1790, uma grande campanha desenvolvida em ambos os lados do Atlântico, associou o tráfico negreiro ao que hoje poderíamos chamar de uma violação dos direitos humanos. Liderada pelos quakers britânicos e por várias organizações abolicionistas, a campanha fez da guerra contra o tráfico um embate contra a manutenção da própria escravidão. Em consequência disso, o Parlamento britânico o aboliu em todas as suas colônias em 1807. Mas, nos Estados Unidos, muitos dos opositores do tráfico eram donos de escravos – como Thomas Jefferson –, e logo se fez uma distinção entre o direito à propriedade e aos cativos e o direito à importação por meio do tráfico negreiro transatlântico. Por isso, a Constituição de 1787 estabeleceu uma data – 1º de janeiro de 1808 – a partir da qual seria oficialmente proibida a entrada de novos escravos africanos no país.
Somente em 1831 foi promulgada uma primeira lei proibindo o tráfico no Brasil, prevendo pesadas penas aos infratores. Essa medida não teve a aplicação esperada, e levou a Grã-Bretanha a legislar diretamente para o Brasil. Por meio de uma lei, Bill Aberdeen, estabeleceu-se em 1845 que a Marinha britânica poderia capturar embarcações negreiras em todos os mares, inclusive em águas territoriais brasileiras, o que foi visto como uma violação de soberania. O impasse criado só foi solucionado com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que levou à extinção do tráfico e ao estabelecimento de medidas complementares para a sua repressão.
Nos Estados Unidos, os anos 1830 foram marcados por uma onda de resgate do protestantismo, o “Segundo Grande Despertar”. Homens e mulheres criaram movimentos e organizações variadas para pregar reformas políticas, religiosas e morais. Proliferaram também as sociedades antiescravidão e os movimentos abolicionistas, que fizeram um amplo uso da retórica fundamentalista para apresentar a escravidão como uma “corrupção” que a virtude republicana deveria combater, um “pecado” com o qual não se podia compactuar.
Os comícios, sermões em igrejas batistas de negros, panfletos, jornais, xilogravuras, livros e peças bancados por esses grupos exerceram uma pressão enorme sobre a opinião pública. Desprezando a luta política institucionalizada dos partidos no Congresso, esses abolicionistas inundaram os estados sulistas com o seu explosivo material de propaganda em 1835, aterrorizando os escravocratas e inaugurando uma grave crise nas relações Norte-Sul. O início da década de 1840 assistiu ao arrefecimento do movimento que combatia a escravatura nos EUA, e que não iria mais se repetir.
No Brasil, a luta parlamentar nunca foi deixada de lado, nem o caminho do abolicionismo gradual foi abandonado. Mas foi somente após a criação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão (1880-1886) que se ampliou mais o fosso entre escravocratas e abolicionistas e houve uma maior mobilização popular pela abolição imediata e sem indenizações. Entretanto, seus defensores mais aguerridos – Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio – viram-se frustrados com os resultados. A abolição definitiva acabou vindo com o ato da princesa Isabel em 1888.
Os congressistas dos estados escravistas dos EUA e os representantes dos que eram livres fizeram, enquanto foi possível, acordos políticos para manter a convivência pacífica e os laços comerciais entre Norte e Sul. O chamado Compromisso do Missouri (1820) foi um desses acordos, a partir do qual as facções que defendiam e as que criticavam a escravidão regularam a sua expansão nos novos territórios do Oeste, e passaram a proibi-la ao Norte do paralelo 36º 30’. Mais tarde, a Resolução de 1848, também conhecida como Wilmot Proviso, redefiniu esses limites, ao repartir entre o Norte livre e o Sul escravista os territórios que haviam sido anexados com a incorporação do Texas (1845) e com a vitória na guerra contra o México (1846-48). Mas em 1850, o desgaste das relações Norte-Sul tornou a crise iminente e fez da secessão uma possibilidade real.
No terceiro ano da Guerra Civil, em 1863, quando o território dos Confederados – os onze estados do Sul que se desligaram da União – começou a ser invadido pelas tropas nortistas –, o presidente Lincoln emitiu uma “Proclamação de Emancipação”. Com este ato, ele libertou os escravos apenas nos territórios e estados ainda revoltosos, e criou um verdadeiro pandemônio no front inimigo. Com o fim do conflito, em 1865, aprovou-se a 13a Emenda da Constituição, decisão que acabou com a escravidão no país como um todo.
O Estado assumiu a responsabilidade pelos libertos, garantindo a eles registros de identidade, oferecendo terras para o cultivo (“quatro acres e uma mula”) e reunindo parentes que haviam se dispersado no período da escravidão. Foi criado um órgão federal especial para realizar essas ações, o Freedmen’s Bureau (1865). A 14a Emenda (1866) decretou que todos os cidadãos nascidos no país ou naturalizados seriam considerados americanos, independentemente da cor, e teriam assegurados seus direitos à liberdade e à propriedade. Já a 15a(1868) defendeu o direito de voto para todos os cidadãos adultos, independentemente de “cor, raça, ou condição prévia de servidão”.
A situação no Brasil pós-abolição foi bem diferente. Nada foi oferecido pela monarquia para a massa desorganizada de libertos “além da liberdade” – nem escolas, nem terras, nem a garantia da cidadania, muito menos o exercício dos direitos civis e políticos. Os republicanos que chegaram ao poder no ano seguinte (1889) lavaram as mãos em relação ao problema, que consideravam atributo exclusivo do Império. Ou seja, coisa do passado...
Muitas das mudanças implementadas no Sul dos EUA após a Guerra Civil, durante os governos radicais, foram anuladas posteriormente pelo progressivo retorno das elites sulistas à cena política em seus estados de origem, no final da década de 1870. Mas a lembrança daqueles anos esteve patente quase um século depois, nos anos 1960, quando negros e brancos tiveram que sair novamente às ruas para promover manifestações e atos públicos em prol do exercício de voto pela população negra. Na famosa caminhada pelos direitos civis no Alabama, liderada por Martin Luther King em março de 1965, eles protestavam com a certeza de que a realidade poderia ser mudada. O hino dos direitos civis – “We shall overcome someday” [“Um dia vamos superar”] – continua reverberando ainda hoje. Afinal, o que lembramos ou esquecemos coletivamente na História sempre diz muito sobre nós mesmos – sobre quem somos e para onde queremos ir.
Marco A. Pamplona é professor da PUC-Rio e autor de Revoltas, repúblicas e cidadania. Nova York e Rio de Janeiro na consolidação da ordem republicana (Record, 2003).
Saiba Mais - Bibliografia
AZEVEDO, Célia Maria M. Abolicionismo – Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (séc. XIX). São Paulo: Annablume, 2003.
FONER, Eric. Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MARQUESE, Rafael B., PARRON, Tâmis P., BERBEL, Márcia R. Escravidão e política. Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.
Igualdade penosa
Marco A. Pamplona