Para agradar aos paladares pouco exigentes do exterior, a economia cafeeira sugou até a última gota de suor dos escravos e boa parte dos recursos naturais da região do Vale do Paraíba. Por outro lado, a bebida injetou o ânimo necessário para alavancar a industrialização no país, e hoje o cultivo já esboça uma relação harmônica com o meio ambiente. Exportado em grãos e chegando aos sofisticados blends (a combinação de diversos tipos de grãos para a obtenção de sabores e aromas específicos), o café deixou diferentes legados na sociedade brasileira. É o que provam Sérgio Besserman Vianna, José Augusto Pádua e Edmar Bacha.
Sérgio Besserman Vianna
Economista, professor da PUC-Rio e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
“O café foi a primeira produção voltada para o mercado de massa global”
A economia cafeeira é a raiz de boa parte das características que formaram a sociedade brasileira. Por meio dela, o capitalismo começou a surgir aqui e pôde ser financiado quando se dirigiu às atividades produtivas industriais e comerciais. O café foi o primeiro commodity global, no sentido de ser um produto feito não para as elites, mas para as massas. Foi a acumulação de recursos em larga escala propiciada por ele que financiou a substituição de importação e o início da industrialização no Brasil.
Não acho que a desigualdade seja um traço peculiar da nossa história. Ao contrário, ela é em tudo similar à desigualdade da sociedade global. A mesma história que levou a um mundo desigual também levou a um Brasil desigual. Nós não estivemos na periferia, mas no miolo de tudo que ocorreu nos últimos cinco séculos. A agromanufatura do açúcar foi o primeiro empreendimento colonial voltado para a produção. Antes, quem conquistava só pilhava e tributava. Já a mineração deixou buracos no Brasil, mas ajudou a financiar a explosão da revolução industrial na Inglaterra. E o café foi a primeira produção voltada para o mercado de massa global, destinando-se à massa trabalhadora que acabara de surgir. A história destes três grandes ciclos não foi periférica aos principais acontecimentos da história mundial: estava no seu cerne.
Mas há uma especificidade no momento em que damos os primeiros passos na direção do desenvolvimento capitalista. Para resolver o problema da oferta de trabalho, a sociedade optou por reinventar a escravidão. Na economia cafeeira, a escravidão não é um resquício colonial. É uma reinvenção dentro do contexto do modo capitalista de produção. Tal legado foi sendo transformado, mas permanece como fator de explicação de parte da nossa desigualdade, como pode ser visto nos vários traços oligárquicos da sociedade brasileira. É essa presença ambígua de elementos do passado com elementos do futuro que continua a caracterizar a sociedade cafeeira.
José Augusto Pádua
Historiador ambiental, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
“Aqui no Brasil, ele foi cultivado a corte raso, com destruição total da mata”
Um dos legados mais importantes é o geopolítico. A sede política da América portuguesa foi transferida para o Rio de Janeiro por conta da economia da mineração, que tinha na cidade seu porto natural. Sem essa base econômica, seria muito difícil fortalecer o Rio como um ímã, o centro deste país em formação. Neste sentido, o café também foi fundamental para a unidade territorial.
Mas também é preciso colocar o café numa perspectiva internacional. Existem dois tipos de padrão de consumo: o da sociabilidade e a cultura do cafezinho. No primeiro, as pessoas param para tomar o café, se reúnem, conversam. No outro caso, o café é visto como energético, bebido no ambiente de trabalho em pequenas doses. No século XIX, o Vale do Paraíba teve sua produção voltada para este segundo tipo, atendendo à classe trabalhadora que se adaptava a um novo ritmo exigido pela civilização urbano-industrial, em especial a norte-americana. Foi uma produção que valorizou a quantidade em detrimento da qualidade e do cuidado com os recursos naturais. Não era uma produção para o consumo do café da sociabilidade que se desenvolveu muito na Europa.
Isto tudo foi feito por meio de uma dupla exploração: a do trabalho escravo, com jornadas extensas e mecanismos de controle muito fortes, e também a da natureza, violentando a mata atlântica. O café é um arbusto originário das florestas africanas, muito bem adaptado à sombra. Em algumas regiões da Colômbia e da Guatemala, cultiva-se o café quase dentro da floresta. Mas aqui no Brasil ele foi cultivado a corte raso, com destruição total da mata. Nos morros, ia-se de baixo para cima cortando as árvores, mas sem deixá-las cair. Então, quando se cortava a do topo, todas iam rolando. Há também o fato de as plantações terem sido feitas em linhas retas ao longo das costas, favorecendo a erosão por ser um lugar de muitas chuvas. Assim, foram sendo minadas as riquezas minerais e orgânicas da terra. No final do século XIX, o Vale do Paraíba já estava numa situação imprestável. O café de qualidade geralmente conta com um manejo do solo e uma relação sinérgica com as florestas. A opção pelo desmatamento total foi maximizadora da quantidade e não da qualidade de nosso café, como vários observadores já apontavam na época.
O legado do café é prestarmos atenção à exploração do mundo biofísico. O Vale do Paraíba é um contraexemplo neste sentido. Ele apenas favoreceu a continuidade de métodos predatórios que já vinham sendo adotados desde o período colonial. Porém, hoje em dia, há inovações, como um projeto no Pontal de Paranapanema, em São Paulo, que faz reflorestamento e plantio de café na sombra das árvores. Estão fazendo o que poderia ter sido feito antes.
Edmar Bacha
Economista, participou da equipe que criou o Plano Real
“Hoje, pode-se produzir quase qualquer uma das variedades de café que existem no mundo”
Há uma frase que considero apócrifa: “O Brasil é o café e o café é o Brasil”. Durante minha pesquisa para o livro 150 anos de café, encontrei uma referência parecida pouco antes do final do século XIX, quando um político disse: “O Brasil é o café e o café é o negro”. Ou seja, o país é uma monocultura de exportação feita a partir do braço escravo. É um fenômeno que vem desde os primórdios da Colônia, com a economia sempre baseada em um produto de exportação movido pelo trabalho escravo, seja indígena ou africano.
Isto é um retrato parcial. A partir do final do século XIX, o café esteve associado a uma diversificação importante na economia do Império e da Primeira República, tendo não mais o negro como base, mas a mão de obra livre, importada principalmente da Europa e depois do Japão. Tanto pelo efeito econômico quanto pelo impacto da imigração na urbanização do país, o café esteve na base da gestação da moderna economia brasileira. Para Celso Furtado, a industrialização brasileira nasceu das cinzas do café. Ele se referia ao impacto da crise de 1929 e à queima de cerca de 80 milhões de sacas de café por Getulio. Esta queima seria um símbolo da transição de um modelo primário exportador para um de industrialização, a partir da substituição de importações. Mas é uma tese controversa. Outros autores perceberam que a renda do café permitiu uma industrialização mesmo antes de 1930.
Historicamente, nós produzimos o grão, e o beneficiamento foi feito pelos países consumidores. A descoberta do café solúvel pelos norte-americanos na Segunda Guerra Mundial teve um impacto importante porque criou toda uma nova indústria para a produção deste café instantâneo. Quando São Paulo apareceu como região exportadora, o padrão brasileiro de café era do tipo arábica lavado. Por volta dos anos 1960, o Brasil passou a ter a concorrência da melhor qualidade dos arábicos produzidos na Colômbia e na América Central e da maior quantidade dos cafés do tipo robusta africano. Parecia que o país iria desaparecer entre a qualidade de um e o preço baixo de outro. Mas não foi isso que aconteceu.
Com o fim do Instituto Brasileiro do Café (IBC) no governo Collor, o mercado foi desregulamentado e o Brasil virou um supermercado de café. Hoje, pode-se produzir quase qualquer uma das variedades de café que existem no mundo. Além disso, o Brasil tem progressivamente desenvolvido misturas de alta qualidade para um produto de maior refinamento. O país não é mais somente um produtor de grãos, mas também de blends.
O café era uma indústria altamente regulada, com enorme intervenção estatal. Isto se justifica numa época em que exercíamos o monopólio da exportação de café no mundo e poderíamos impor nosso preço, desde que houvesse essa centralização. Hoje o café deixou de ser importante na pauta de exportação brasileira, pois representa só cerca de 3%. Até os anos 1960, este percentual chegou a 70%. Mesmo antes de Getulio, outros órgãos já faziam o papel do IBC. Quando se perde o monopólio, a concorrência de países americanos e até asiáticos, como o Vietnã, não justifica mais esta enorme burocracia no processo de exportação. Ao romper esta centralização, permite-se que as forças da concorrência se manifestem e que cada produtor encontre, dentro de suas especialidades, as melhores oportunidades para explorar o mercado.