O café moldou a paisagem rural e urbana no Centro-Sul do Brasil a partir do século XIX. Enormes áreas de florestas e cerrados foram cortadas e queimadas para dar lugar aos cafezais, a cidades e ferrovias. Cem anos depois, ele perdeu lugar no espaço agrícola, na vida cotidiana, na pauta das exportações e até na política. Hoje, são os desertos verdes que dominam as áreas rurais, com o tapete unicolor da monocultura de soja, de milho ou de cana. Enquanto o solo desnudo aguarda novo plantio, nada de árvores, rios, florestas, bichos ou pessoas.
A mata atlântica, que dominava os territórios de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Paraná, ficou reduzida aos terrenos íngremes, fundos de vale e áreas pouco atraentes para a agropecuária. Mas até meados do século XX, sobrevivia outra relação dos homens com a natureza.
Um exemplo podia ser observado na cidade de Marília, nos anos 1960. A cidade, que foi um importante centro cafeicultor no oeste paulista, tinha seu núcleo urbano cercado por uma paisagem verde, formada pelos cafezais de antigas fazendas. Nos quintais das casas, na primavera, as flores das árvores enfeitavam o ambiente e perfumavam o ar. Os pés de limão, laranja, goiaba e jabuticaba forneciam frutas. Era possível ouvir ainda o canto dos passarinhos nos pequenos pomares domésticos.
Um novo conjunto habitacional podia ser considerado um microcosmo desse mundo, já que abrigava tudo isso em pequenos lotes urbanos que cercavam as casas. Na primeira metade do século XX, milhares de migrantes vieram de diferentes países e estados brasileiros para trabalhar em fazendas de café e depois foram morar na cidade.
Nas antigas plantações, os colonos que trabalhavam no café eram obrigados a comprar e manter suas próprias ferramentas, que os acompanhavam nas andanças entre as fazendas e na marcha das plantações nas zonas pioneiras. Na cafeicultura, enxadas, foices, facões e cestos de palha eram empregados no trato de plantas e animais, capina do solo e limpeza do chão.
Aquelas casas reproduziam, apertadas na cidade, o mundo material e espiritual da antiga atividade rural. Os colonos do café tinham uma rotina de trabalho meticuloso, muito zelo com plantas, animais e instrumentos de trabalho; os horários eram marcados por refeições, e nas horas vagas não deixavam a conversa com vizinhos e amigos de lado. As cercas, que delimitavam os terrenos, eram de ripas de madeira. Nas cidades sobreviviam casas de tábuas, construídas em décadas anteriores, quando a abundância e a proximidade de matas e serrarias tornavam esse material mais farto e barato do que os tijolos para construção.
Ao longo da década de 1970, tudo parecia mudar, e rápido. As cidades cresciam, abrigavam a população atraída pelo desejo de um emprego nas fábricas, no comércio ou no serviço público. A expansão da grande propriedade agrícola devorou áreas indígenas, chácaras e sítios, dando origem às grandes fazendas de gado, laranja e cana. O trabalho mecanizado, o crédito bancário e os modernos insumos agrícolas invadiram a terra. A planta, o café e os trabalhadores europeus, japoneses e nordestinos foram postos para fora em pouco tempo. O que restava da mata, dos rios, dos córregos e das alas de casas de tijolo aparente das velhas colônias foi transformado sob o padrão da agricultura estimulado pelo governo militar com muita propaganda oficial.
Desde então, a incorporação dos novos elementos da economia agrícola ao cotidiano rural não parou de crescer. Houve uma verdadeira revolução verde, que pode ser considerada a mãe do agronegócio. A paisagem agrária dos cafezais foi sucedida pela paisagem despovoada de fauna e flora, de rios espremidos entre as plantações, de solos erodidos.
Nas épocas em que os preços do café caíam no mercado mundial, terra e trabalho seguiam o ritmo e a escala da exploração individual, familiar. Então, os pomares frutificavam, as hortas cresciam e a mesa era mais farta, com maior quantidade e variedade de alimentos. A vida do trabalhador rural se aproximava da natureza e de seus caprichos. Muitas casas na área urbana, que preservaram objetos de trabalho, quintal, jardim e pássaros, são testemunhos de apego à natureza e à terra.
Esse espírito sobreviveu ao tempo em que o universo social do café já desaparecia no espaço. Hoje, vai sumindo aos poucos, empalidecendo a memória, desfigurando antigas casas, bairros e cidades inteiras. A rápida transformação na agricultura, ocorrida nos anos 1970, enfraqueceu os vínculos sociais com a natureza, que se torna um lugar distante e mítico. Em poucas décadas surgiu um novo mundo rural no Brasil, hoje chamado de agronegócio.
Não foi o café que degradou a natureza no Sudeste brasileiro. Foi o espírito mercantil imediatista, em busca de lucro e riqueza a qualquer custo, que importou essa planta, originária da Ásia, as máquinas e os homens, para fazer deles dinheiro.
No início do século XX, as cidades mortas, criadas e abandonadas pela cafeicultura, foram descritas por Monteiro Lobato em belo livro de contos e histórias, reeditado inúmeras vezes. A desolação do homem rural e da vida urbana sustentou essa literatura ambientada na vida cotidiana das fazendas do Vale do Paraíba e do oeste paulista. Já no começo do século XXI, as cidades das antigas zonas cafeicultoras são dinâmicos centros urbanos, como Campinas, Ribeirão Preto, Marília e Londrina. Hoje, são cidades sujas, dominadas pela poluição, pelo lixo e pela falta de saneamento básico que agridem diariamente as pessoas e a natureza.
Paulo Henrique Martinez é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e autor de História ambiental no Brasil: pesquisa e ensino (Cortez Editora, 2006).
Saiba Mais - Bibliografia
LOBATO, Monteiro. Cidades mortas. São Paulo: Brasiliense, 1964.
RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. 16º ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
STOLCKE, Verena. Cafeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986.
Harmonia interrompida
Paulo Henrique Martinez