O caminho dos cafezais

Ana Luiza Martins

  • Café popular em Londres no século XVIII. O sucesso da infusão despertou o interesse dos monarcas europeus.

    “Segure uma xícara exalando o aroma de um bom café e você estará com a História em suas mãos!” Não há exagero neste ditado. Um simples gole dessa bebida estimulante nos leva a uma imensa cadeia de produção, embalada em muita aventura e ousadia, e ao exotismo do Oriente. O conteúdo renovador desta infusão transformou-a na segunda bebida mais consumida no mundo, só perdendo para a água. 

    Sua trajetória do Oriente para o Ocidente é narrada por meio de histórias fantásticas, disputas ferrenhas, consagrando a bebida como um dos motores da sociedade moderna. O milenar percurso de suas sementes, que atravessaram continentes e mares, faz lembrar o lugar onde tudo começou. 
        
    A fruta vermelha que nasce da flor branca do pé de café foi descoberta por volta do ano de 525 no interior da Etiópia. Já a primeira referência alusiva ao uso comestível do café está em manuscritos do Iêmen, de 575, que revelam a Lenda de Kaldi. Reza a lenda que um pastor de cabras da Etiópia observou o efeito excitante que as folhas e os frutos de determinado arbusto produziam em seu rebanho. Os animais que mastigavam a planta subiam as montanhas com agilidade e apresentavam mais resistência. Kaldi experimentou seus frutos, confirmando os dotes estimulantes, e seu consumo se disseminou pela região.

    Os etíopes se alimentavam de sua polpa doce, por vezes macerada, ou misturada em banha, para refeição. E produziam um suco que, fermentado, se transformava em bebida alcoólica. As folhas também eram mastigadas ou utilizadas no preparo de chá. A infusão do fruto – quando se mergulha em água fervente uma substância para obter dela outra –, porém, ocorreria mais tarde, a partir do ano 1000, com as cerejas fervidas em água, para fins medicinais. Mas a bebida só adquiriu forma e gosto como a conhecemos hoje no século XIV, com a torrefação.

    O café da Etiópia atravessou o Mar Vermelho e foi levado para a Península Arábica. Coube aos árabes o domínio inicial da técnica de plantio e preparação do produto. A primeira região a receber as sementes foi o Iêmen, no Sudoeste da Ásia, onde até os monges se valiam do café para rezas e vigílias noturnas, adequando-se aos preceitos religiosos ditados pelo Alcorão, que condenava bebidas alcoólicas. O consumo foi aumentando e popularizou-se no país. Também foi no Iêmen que se deu a primeira produção comercial em larga escala do produto, no século XIV.

    Impregnado na cultura do mundo islâmico, o café foi incluído até mesmo na legislação turca, segundo a qual as esposas podiam pedir divórcio caso os maridos não provessem a casa de uma cota de café. E coube exatamente à Turquia o pioneirismo do “hábito do café”, que ali se transformou em ritual refinado.

    O excessivo consumo do café, liberador de emoções, levou o governador de Meca, Khair Beg, a proibi-lo em casas públicas e mosteiros em 1511, determinando a incineração dos estoques. Sua atitude contrariou o sultão Cansú, que o condenou à morte e decretou que a bebida era sagrada. O café também foi proibido pelo sultão Murad III (1574-1595), que o considerou “bebida do diabo”, vista como ameaça para o clero muçulmano. As campanhas contrárias foram em vão. Seu consumo já se arraigara no cotidiano árabe, lançando-se, inclusive, um imposto sobre o café, fonte de divisas para o tesouro do país.

    Em pouco tempo, seu valor mercantil seria cobiçado pelo Ocidente, estimulado também pela aura da bebida, proveniente do fantástico e dourado mundo islâmico. Cuidadosamente defendidos, seus grãos só deixavam as terras da Arábia após a retirada do pergaminho, a fina película que envolvia as sementes, responsável pela sua germinação. Assim, grãos sem pergaminho, exclusividade árabe, ganharam mercados e passaram a correr mundo somente para o preparo da bebida.

    Data de 1615 sua entrada em Veneza, o grande centro comercial de especiarias e artigos de luxo do Mediterrâneo. Sua infusão era bebida rara, encontrada em poucas mesas, elegante e cobiçada. Mas a grande receptividade esbarrou em fortes resistências. Inicialmente, de caráter religioso, numa Europa da Contra-Reforma, cerrada na defesa da religião católica, quando o café foi visto como alimento procedente do lado herege do mundo. Cogitou-se sua excomunhão, revertida pelo papa Clemente VIII (1523-1534), que, ao apreciá-lo, propôs seu batismo, para que se tornasse uma verdadeira bebida cristã.

    Mais que as restrições de ordem moral, a bebida passou a ser temida pela ameaça econômica que representava, sobretudo, para os mercadores de vinho. Houve, então, uma ampla campanha para desacreditá-lo. Frederico, o Grande, rei da Prússia (1740-1786), tornou-o monopólio estatal para melhor controlar aquele comércio de grãos em franco desenvolvimento. O alto consumo da bebida e o potencial comercial do produto geraram ambição maior: a obtenção da muda ou, preferencialmente, do grão revestido pelo pergaminho, fecundador e produtor da muda do café.

    Coube aos holandeses, donos dos melhores navios mercantes e que dominavam o comércio europeu, obter as primeiras mudas, em 1616. Amsterdã logo se tornou um poderoso centro difusor do produto. O café acabou indo parar em suas colônias da Índia, do Ceilão, chegando até a Indonésia.

    A França não ficou fora desse circuito por muito tempo. Desde 1644 os grãos eram introduzidos no porto de Marselha, mas foi a passagem do embaixador turco Suleiman Aga por Paris, em 1699, que aguçou o interesse pelo produto sofisticado. Ele presenteou Luís XIV (1647-1715) com grãos de café e promoveu festas ritualísticas em torno da bebida. Tomar café logo virou moda requintada em mesas palacianas.
    Em 1713, o rei ganhou do burgomestre de Amsterdã uma muda da planta e iniciou sua lavoura na Ilha Bourbon, no Mar das Índias (hoje, Ilha Reunião). Com os carregamentos de café cada vez mais disputados, urgia ampliar seu cultivo. Luís XIV resolveu, então, enviar algumas mudas para a Ilha da Martinica, na América Central. Com apenas uma planta viva – a única que restou da viagem – iniciou-se a plantação, que obteve sua primeira colheita em 1726. Cinquenta anos mais tarde, a Martinica teria 19 milhões de pés da planta, produto sob controle severo, que atendia à ordem expressa: “Proibida a venda de café capaz de nascer”.   

    O fruto chegou ao Brasil proveniente dessa ilha. O responsável por introduzir as primeiras sementes no Pará, em 1727, foi Francisco de Melo Palheta (1670-?).  Ele era um militar graduado, funcionário real que foi nomeado para a verificação e a demarcação de fronteiras entre a capitania do Grão-Pará e a Guiana Francesa, e para a busca de novos produtos agrícolas de interesse mercantil.

    A recomendação do seu Regimento – normas que recebeu da autoridade superior, o governador do Pará, João da Maia da Gama – era clara: “Se acaso entrar em quintal ou jardim ou roça aonde houver café, com pretexto de provar alguma fruta, verá se pode esconder algum par de grãos com todo o disfarce e com toda a cautela e recomendará ao dito cabo que volte com toda a brevidade e que não tome coisa alguma fiada aos franceses, nem trate com eles negócio”.

    Palheta retornou ao Brasil com sementes e alguns pés de coffea arábica da Guiana Francesa. No entanto, demorou um pouco a trajetória do produto dos cafezais de Palheta no Pará ao primeiro lugar de nossa balança comercial, no século seguinte.

    Mas a década de 1760 foi baliza para o primeiro arranque de seu cultivo sistemático. O quadro econômico era sombrio, em razão do declínio do ouro e das dificuldades para a colocação do açúcar no mercado. Outras culturas precisavam ser testadas para reanimar o combalido reino português. Por volta de 1762, algumas mudas de café foram trazidas de Belém para o Rio de Janeiro, sendo distribuídas entre chácaras nas imediações da cidade. Na sequência, mais religiosos e estrangeiros, que conheciam a importância comercial do produto, cultivaram a planta.

    Os rústicos lavradores fluminenses, acomodados no cultivo da cana, inicialmente se opuseram ao seu plantio, mas se renderam diante das condições favoráveis para seu cultivo: solo e clima propícios, demanda dos mercados, declínio do açúcar, facilidade de adaptação aos engenhos, mão de obra barata e abundante, e incentivos do governo. A abertura dos portos do Brasil por D. João VI em 1808 e o fim do Bloqueio Continental – que liberou o comércio marítimo europeu após a derrota da França napoleônica – em 1814 ajudaram a colocação definitiva do produto no mercado internacional.

    Nestes primórdios do café, as montanhas da Gávea, do Corcovado, da Tijuca e de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, foram tomadas pela planta. Estava deflagrada a onda verde, que dos morros cariocas se espraiou pelo Sudeste. O país começava a escrever uma nova história. As tintas e as cores desse relato foram dadas pelo cafezal.  

    Ana Luiza Martins é historiadora da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e autora de História do Café (Contexto, 2008).
    ROMERO, José Peres; ROMERO, José Carlos Peres. Cafeicultura prática. Cronologia das publicações dos fatos relevantes. São Paulo: Editora Agronômica Ceres, 1997.
    SILVA TELLES, Augusto C. da. O Vale do Paraíba e a arquitetura do café. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2006.
    TRUZZI, Oswaldo. Café e indústria. São Carlos (1850-1950). São Carlos: UFSCar, 1986.