Era uma casa velha, pintada de verde, com uma porta que dava para a rua e outra que dava para o beco, guardando a intimidade dos frequentadores com providenciais “meias-portas”. Ali funcionou, entre 1850 e 1860, um dos primeiros cafés da cidade de São Paulo. Ficava na Rua da Imperatriz, esquina com o Beco do Colégio. O freguês chegava, empurrava as folhas das portas e entrava numa sala com vigas e ripas aparentes. No meio do recinto havia uma mesa grande e encardida, constantemente servida pela proprietária do local, Maria Punga.
Mulata e gorda, ela, na verdade, chamava-se Maria Emília Vieira. Mas os fregueses lhe botaram o apelido, e assim ela e seu estabelecimento ficaram conhecidos. Maria usava uma toalha na cabeça, argola de ouro e um ramo de arruda nas orelhas. Era amiga de homens poderosos que frequentavam o lugar.
Seu café era famoso. Ela mesma torrava e socava os grãos num pilão velho. Mas a receita que a tornou célebre estava na maneira de coar, apenas três canecos de cada vez. Enquanto esperavam e conversavam com conhecidos, os fregueses costumavam comer quitutes, bolos de fubá, broinhas de polvilho, bolinhos de tapioca. Pouco menos de cinquenta anos depois, no último quartel do século XIX, a maneira artesanal de fazer e consumir café na cidade havia mudado de maneira radical. Estabelecimentos como o de Maria Punga passaram a conviver com casas mais sofisticadas, que tinham balcões de mármore, mesas redondas e cadeiras de palhinha. Nessas novas casas, eram servidos docinhos franceses, bombons, sorvetes de chocolate, pudins caramelados, pães-de-ló e, quem diria, pão com manteiga, uma iguaria consumida somente pelos que podiam pagar o alto preço do trigo e da manteiga importada.
“Novos símbolos chegavam e os velhos iam embora”, descreveram inúmeros estudiosos do período. Mas, na verdade, esses símbolos, então recém-criados e consumidos pela elite do café em São Paulo, faziam da cidade um lugar estranho, híbrido, em que os calçadões conviviam com ruas de terra, em que barões com cartolas vestidos à inglesa andavam ao lado de escravos e forros.
Dessa maneira, a alimentação acompanhou a urbanização de São Paulo, num período de profundas transformações. Também refletia esse processo dúbio de extrema riqueza e muita miséria. Enquanto muitos se divertiam nos recém-criados e luxuosos cafés da cidade, como o Java ou o Guarani, a sobrevivência cotidiana de muitas mulheres era garantida pela venda de bolos, cuscuz, peixe frito, amendoim ou doces em tabuleiros pela cidade. Mas era o café que fazia a história e a fortuna da cidade girar, e sua história havia começado alguns séculos antes dessas transformações.
A popularização dos cafés no Velho Continente data do século XVII. O chá, o chocolate e o café se tornaram uma verdadeira mania entre as cortes europeias desse período, competindo com bebidas altamente calóricas e populares, como vinho e cerveja.
Não era exatamente a bebida em si que importava para a sociedade de corte, mas como ela era consumida, as oportunidades que poderia proporcionar para as demonstrações de elegância, graça e refinamento.
Mas tomar café não significava apenas sorver o líquido denso e amargo. Desde sua origem, no Oriente, abriram-se casas especializadas em servir a bebida. O café e o local onde ele podia ser consumido tornaram-se indissociáveis, assim como as informações sobre a vida cotidiana. Tanto que muitos jornais nasceram em cafés. E, claro, os jornalistas também passaram a frequentar esses locais privilegiados de informações e debates.
Por isso, na São Paulo que começava a crescer, Maria Punga teve um senso excepcional de negócio. Abriu sua casa bem no centro da cidade, e o sucesso era garantido pela freguesia que conseguira angariar. Nas xícaras brancas, vendido a 40 réis, o café estimulava as discussões entre estudantes, políticos, artistas, negociantes e empregados do comércio.
Poucos anos depois, em 1876, foi inaugurado na mesma rua o Café Europeu, que, como o nome já salientava, seguia os modelos estrangeiros, com mesas de mármore, cadeiras de palhinha, comidas e doces importados. De propriedade de Vicente Médici, foi um dos primeiros estabelecimentos do gênero na província. Ficava numa casa térrea, na esquina do Beco do Inferno, cujo nome oficial era Travessa do Comércio. Diferente do café de Maria Punga, o novo estabelecimento prometia ser o primeiro do gênero feito “com luxo e esmero” da capital. O conceito de café havia mudado, e incluía na lista de serviços oferecidos alimentos, diversão e requinte.
Seguindo a linha do Café Europeu, foram abertos locais de recreação, claramente inspirados nas tradições europeias. Os cafés haviam se internacionalizado, ganhado nomes e funções diferenciados e refletiam as mudanças que se aceleravam no final do século. Ganhavam ares cosmopolitas. O jornalista e escritor Afonso Schmidt (1890-1964) se recordava dos tempos em que estes locais dominavam o centro de São Paulo: “Havia cafés de vários gêneros, de diversos feitios. Dos mais humildes, nas travessas e ruas de má nota, aos grandes estabelecimentos rodeados de espelhos, com dezenas de mesas e uma freqüência geralmente escolhida. Naqueles tempos, muita gente ainda se lembrava do ‘Europeu’, café que permanecia aberto dia e noite. Há trinta anos tínhamos o Java, o América, o Brandão e o Acadêmico”.
A frequência nos cafés era diversificada. O espírito de reunião e interação de lugar onde se ficava sabendo das notícias quentes da cidade permanecia, em grande parte, o mesmo dos primeiros estabelecimentos do gênero na Europa. Nas mesinhas de mármore, os homens podiam sentar-se para ler um dos jornais da cidade ou mesmo uma revista vinda da Corte. “Os fregueses gostavam de rabiscar naquelas pedras brancas, com veios ligeiramente azulados. Se ainda existissem esses mármores, bem poderiam ir para o museu. Estavam sempre cheios de desenhos, de poesias, de retratos, de sátiras e, não raro, de mofinas”. Assim, criavam-se poesias para namoradas, declamavam-se versos para os amigos.
Afonso Schmidt também guardou na memória o Guarani, que funcionou entre 1904 e 1914 na Travessa do Comércio. Durante o dia, o lugar atendia uma freguesia composta de comerciantes e corretores. Mas, à noite, seus salões brilhavam com o burburinho do falatório e das risadas. No fundo, uma orquestra que tocava valsas de Strauss.
Não à toa, memorialistas, como Schmidt, usam um tom amargo para falar dos cafés que costumavam frequentar e que não mais existiam. A introdução das máquinas no começo do século XIX criou os expressos, que, a princípio, foram recebidos com reservas. Aos poucos, o público se habituou aos tais estabelecimentos, onde não havia cadeiras nem mesas e todos tinham que se encostar no balcão para sorver o café. “A escassez de espaço”, conta o cronista com saudade, “veio liquidar os antigos estabelecimentos. Quem dispõe hoje de um salão daquelas proporções não mais instala um café, instala tantos cafés quantas sejam as portas, e ainda lhes sobra salão para outras tantas casas comerciais”.
Joana Monteleone é autora da dissertação “Sabores urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo (São Paulo, 1828-1910)” (USP, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
BRUNO, Ernani da Silva. Café & negro. São Paulo: Atlanta Editorial, 2005.
MINTZ, Sidney W. Sweetness and power. The place of sugar in modern history. Nova York: Penguin Books, 1985.
SCHMIDT, Afonso. São Paulo dos meus amores. São Paulo: Boitempo, 2004.
Requentado não, requintado
Joana Monteleone