A carne é forte

Rodrigo Elias

  • Ingerir alimentos sempre esteve intrinsecamente ligado às distinções de grupo e ao simbolismo dos ingredientes e dos modos de comer. No século XX, entretanto, este fato social assumiu feições mais graves. O aumento populacional, a organização da produção, da distribuição e da venda de alimentos dentro de um modelo capitalista global, além das transformações na dieta daí decorrentes conferem ao aparentemente simples ato de escolher um item no cardápio consequências ambientais, econômicas e políticas que colocam em risco, pela primeira vez, a vida como a conhecemos.
     
    O elemento central da dieta ocidental é a proteína animal, especialmente a de origem bovina – em termos simbólicos e práticos. O consumo de carne, leite e derivados, que ocupava posição discreta na alimentação humana até o século XIX, hoje é hábito diário de bilhões de pessoas. Estima-se que, em menos de um século, dobrou a média de consumo desses alimentos por pessoa. Some-se a isso o fato de que nos últimos cem anos a população mundial saltou de 1,65 bilhão para 7 bilhões de indivíduos, e dá para ter uma ideia da dimensão dessa expansão. 
     
    Do nível biológico ao cultural, passando pela organização econômica e política da nossa sociedade, os impactos das transformações alimentares recentes são profundos. Não existe consenso científico sobre benefícios e malefícios do consumo cotidiano de produtos de origem animal para a saúde humana. Há especialistas que defendem o uso desses alimentos como forma de suprir a necessidade de determinados nutrientes. Entretanto, desde a década de 1980 diversos estudos demonstram, por exemplo, a relação entre alto consumo de leite e laticínios e o desenvolvimento de doenças coronarianas, o câncer de próstata, de intestino e de ovário. Pesquisa desenvolvida na China a partir da década de 1970, com levantamento estatístico em todas as províncias, também associa o consumo de proteína animal a vários tipos de câncer. Nutricionistas da Universidade Federal de Alagoas e da Universidade Federal de Pernambuco relacionaram o uso preferencial de leite de vaca na alimentação infantil ao aumento do risco de anemia. Um estudo da Universidade de Oxford, na Inglaterra, concluiu que a diminuição no consumo de carne poderia reduzir em 45 mil o número de mortes anuais apenas no Reino Unido. A Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, um dos mais prestigiados centros de estudos do mundo, questionou recentemente a inclusão de leite e laticínios em uma dieta saudável – prática recorrente nos Estados Unidos por parte das autoridades públicas de saúde e nutrição, que cedem com certa facilidade ao lobby dos produtores. Os especialistas de Harvard detectaram risco de câncer no grande consumo desses alimentos. A Organização Mundial de Saúde já recomendou que se substitua a dieta baseada na ingestão de animais por uma baseada em vegetais. Uma pessoa adulta pode viver com pequenas porções de alimentos originados em plantas.
     
    Mesmo se considerássemos o consumo de carne e leite bovinos definitivamente seguro para a dieta regular humana (bem como as outras fontes de proteína animal, como porcos, aves e peixes), outras questões mereceriam ser consideradas. A começar pela reflexão de que comer carne, leite e derivados na quantidade que fazemos atualmente é participar de uma cadeia produtiva que começa com a derrubada de florestas. Nos últimos anos, a devastação da Floresta Amazônica está acontecendo na velocidade de um campo de futebol por segundo. E a quase totalidade do desflorestamento na Amazônia brasileira, em torno de 90%, ocorre para a produção de proteína animal – seja para abertura de pasto, seja para a produção de soja para alimentar os animais. Entre outros prejuízos ambientais, o desmatamento acarreta transformações climáticas, como é possível perceber na mudança no regime das chuvas em todo o continente sul-americano. A evaporação que vem da floresta cria “rios aéreos” responsáveis por boa parte da umidade que se desloca em direção ao sul durante os meses mais quentes. À medida que as matas diminuem, aumentam as secas, inclusive nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. A chamada “crise hídrica” está longe de ser um problema criado pela própria natureza.
     
    Da criação de gado origina-se outro fenômeno associado às mudanças climáticas: a emissão de gases do efeito estufa. O senso comum atribui este problema à queima de combustíveis fósseis, mas está comprovado que boa parte do dióxido de carbono e do metano lançados na atmosfera desde o início do século XX, aumentando a temperatura do planeta e desregulando os ciclos naturais, resulta principalmente das terras onde pastam tranquilos os bois e as vacas, assim como das outras criações. Enquanto todo combustível fóssil utilizado nos meios de transporte – carros, caminhões, navios, trens e aviões – é responsável por 13% das emissões, a agropecuária é responsável por 51%, da digestão dos animais e da decomposição dos dejetos à derrubada de florestas. A pecuária produz 130 vezes a quantidade de dejetos eliminados pelos humanos e, em geral, este subproduto é lançado na natureza sem tratamento adequado. No Brasil, com seus 200 milhões de habitantes, há 240 milhões de cabeças de gado.
     
    Optar por produzir carne significa abrir mão de outros alimentos. Um boi em confinamento consome diariamente 18 quilos de ração – contendo, entre outros ingredientes básicos, trigo, milho, arroz e soja. A grande maioria das crianças em situação de insegurança alimentar ou fome vive em países que produzem grande quantidade de grãos para criação de animais, isto é, para produzir um alimento consumido por quem pode pagar mais caro. Esta, por sinal, é uma tendência histórica: a carne é artigo caro, consumido pelas elites, o que acabou criando um padrão almejado por toda a sociedade.
     
    Além disso, enquanto um ser humano consome entre dois e três litros de água por dia, um boi consome cerca de 40 litros, e uma vaca produtora de leite pode beber mais de 70 litros diariamente. A produção de um quilo de carne consome mais de 15 mil litros de água. Em um bife de 120 gramas, desses que comemos nos sanduíches das cadeias de fast food, são gastos 1.800 litros (muito mais do que um banho demorado). Para cada litro de leite, vão-se mil litros de água. O Brasil produziu, em 2014, cerca de 10 milhões de toneladas de carne e 37 bilhões de litros de leite. A maior parte da água doce disponível é consumida pela agropecuária: 69% contra 21% do consumo residencial.
     
    Trata-se, sobretudo, de escolha política. O estado distribui o custo econômico da produção de carne para a população em geral, ao conceder subsídios e créditos agrícolas aos pecuaristas. Impostos pagos por todo cidadão barateiam a produção, o processamento e a comercialização de alimentos de origem animal. É uma cadeia produtiva que volta e meia vira notícia nas páginas policiais: grandes produtores de gado são flagrados em ações ilegais de desmatamento ou submetendo trabalhadores a situações análogas à escravidão. Em 2014, o Plano Agrícola e Pecuário do Ministério da Agricultura disponibilizou R$ 156,1 bilhões para os produtores. No mesmo ano, o orçamento para a Saúde foi de R$ 106 bilhões. 
     
    Tanto dinheiro assim, é claro, compromete o funcionamento do sistema político e afeta a qualidade da democracia. Dificilmente o padrão dietético atual pode ser repensado por autoridades públicas de forma isenta, priorizando a saúde da população ou mesmo a preservação ambiental. A maior empresa privada do Brasil, JBS, é uma companhia que processa e vende carne. Na última década, seus proprietários viram os negócios crescerem exponencialmente no Brasil e no exterior, transformando-a na maior empresa de carnes do planeta – com faturamento de R$ 116 bilhões no ano passado. Um sucesso incentivado pelo Estado brasileiro. Do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) saíram R$ 10,3 bilhões, sob a forma de compra de ações e empréstimos, desde 2007. Esta mesma empresa, nas últimas eleições, foi a maior doadora de recursos para os partidos políticos, tanto da situação quanto da oposição, repassando às campanhas R$ 366,8 milhões. 
     
    Da próxima vez que você saborear um hambúrguer, será bom que esteja consciente do fato de que o ato de comer, para além de matar a fome, também é uma opção política. 
     
    Rodrigo Elias é professor das Faculdades Integradas Simonsen, editor da Revista de História e autor de “Feijoada: breve história de uma instituição comestível”, em Textos do Brasil, n. 13, p. 33-39, 2010.
     
    Saiba Mais
     
    SIMON, David Robinson. Meatonomics. San Francisco, Conari Press, 2013.
    NOBRE, Antonio Donato. O Futuro Climático da Amazônia. São José dos Campos, ARA, 2014.
    CAMPBELL, T. Colin e CAMPBELL, Thomas M. The China study. Dallas, BenBella Books, 2005. 
    DIEGUEZ, Consuelo. “O estouro da boiada: como o BNDES ajudou a transformar a Friboi na maior empresa de carnes do mundo”, in Piauí, n. 101, fevereiro de 2015, p. 16-24.
     
    Filmes
     
    Cowspiracy: The Sustainability Secret (2014)
    Forks over knives (2011)