À moda da elite

Fabiano Dalla Bona

  • Se há inúmeras maneiras de distinguir a classe social de um indivíduo, uma delas está sobre a mesa. A forma de se comportar no momento da refeição e o tipo de alimento ingerido podem dizer muito sobre aspectos psicológicos e culturais da pessoa e de sua realidade social. Desde que começou a viver em grupo e a preparar seus alimentos, o ser humano sentiu a necessidade de estabelecer regras para o ritual do consumo da comida. Ao longo da história, as diferentes civilizações e sociedades desenvolveram sistemas próprios nesse campo, reforçando identidades e separando seus membros em distintas classes sociais.
     
    Já no sistema de valores elaborado pelo mundo greco-romano da Antiguidade, uma das formas de diferenciar o homem civilizado dos animais e dos bárbaros era justamente a comensalidade: o ato de comer não somente para saciar a fome e satisfazer uma necessidade primária do corpo, mas como um momento de sociabilidade, um gesto extremamente comunicativo.
     
    A relação entre o banquete e a integração na comunidade foi característica marcante nas sociedades ocidentais medievais. Todo acordo um pouco mais solene se concretizava (e ainda se concretiza) pela participação em uma refeição. O companheiro – do latim cum panis (com quem se divide o pão) – senta-se à mesa para celebrar o contrato proposto, e a comida em comum simboliza o acordo. O filósofo Plutarco afirmava: “convidamos uns aos outros não para comer e beber, mas para comer e beber juntos”. 
     
    O banquete é onde as identidades se exprimem e as trocas sociais ocorrem. Sua forma representa hierarquia e relações de força, simbolizadas pelos lugares de cada um à mesa, pelos critérios na divisão da comida e pelo gênero dos alimentos servidos a cada participante. Era comum apresentar pratos distintos para diferentes convidados, segundo a camada social dos mesmos. A alimentação era a primeira ocasião para as classes dominantes manifestarem a própria superioridade. Ao agregar por um lado, distingue grupos por outro. Luxo e ostentação da comida exprimem um verdadeiro comportamento de classe, separando aqueles que comem mais e melhor daqueles que comem menos e pior. 
     
    A capacidade de alguém procurar, ter e consumir determinados ingredientes comunicava aos demais a sua colocação na pirâmide social. Exagerar no uso de iguarias exóticas significava ter posses, pois as especiarias provinham em sua maioria do Oriente e eram comercializadas a preços elevados. Somente patrícios podiam consumi-las. 
     
    Conjunto de chá em óleo sobre tela de Jean-Étienne Liotard, século XVIII. Enquanto a sofisticação passa a fazer parte da cultura alimentícia de alguns, o casamento plebeu retratado por Pieter Bruegel, do século XVI, mostra a diferença de costumes entre os grupos sociais. (Imagem: The J. Paul Getty Museum, Los Angeles)A ostentação da disponibilidade de especiarias tornou-se uma mania, que aos poucos se popularizou. A pimenta-do-reino já integrava 80% das receitas do gastrônomo romano Marcus Gavius Apicius (25 a.C.-37 d.C.) na obra De Re Coquinaria (ou Livro de Cozinha), e manteve seu prestígio até depois da Idade Média. Com a queda do preço nos mercados da Europa, o tempero importado pelos venezianos passou a fazer parte da cozinha dos menos abastados. Perdeu espaço para o gengibre, que se tornou então a mais célebre das mercadorias do Oriente entre os abastados. 
     
    A culinária medieval conservou muito da cozinha da antiga Roma, tanto na seleção dos ingredientes como no uso exagerado das especiarias. Graças às ricas repúblicas marítimas de Veneza, Gênova, Pisa e Amalfi, as iguarias abundavam na alimentação dos ricos senhores daquelas cidades. A classe dominante também se fazia distinguir pela abundância das carnes e o luxo dos pescados frescos, em quantidades que beiravam o absurdo. Mais tarde, a ampliação da variedade e da riqueza dos ingredientes, com os produtos exóticos trazidos do Novo Mundo, culminaria numa apoteose dos sentidos na qual paladar, olfato e visão contribuíam para elevar também o espírito, proporcionando o máximo de prazer e puro deleite estético. 
     
    Para os mais ricos, chegou às mesas a mítica bebida dos astecas: o chocolate. O desembarque do cacau na Europa ocorreu no século XVI, mas a difusão da bebida deu-se apenas nos séculos seguintes. O século XVIII, principalmente, foi a época do “hedonismo de massa”: atitudes afetadas dos homens e das mulheres da corte, num consumismo frívolo em busca de prazeres na abundância dos bens materiais. Isto se refletia na qualidade da vida, no modo de vestir e de se alimentar.
     
    O luxo das mesas era uma realidade desde a Idade Média. Pratos de animais assados eram apresentados revestidos com suas próprias pelagens e plumagens, ou então revestidos com folhas de ouro. Mas o auge da cenografia aconteceria com o advento do cozinheiro francês Antonin Carême (1784-1833), apelidado de “confeiteiro arquiteto”, inventor da chamada cozinha burguesa que exaltava o fracasso da Revolução Francesa – o movimento empurrou aristocratas para o exílio, forçando os antigos cozinheiros da nobreza a abrir restaurantes nas cidades, principalmente em Paris. O que era “tesouro escondido” nas residências nobres, agora se difundia entre os burgueses.
     
    O que emerge é a imagem de uma Europa reformada em seus gostos e com novas leis para ditar as normas da alimentação. Os cardápios espelhavam uma tentativa de sepultar o peso do passado, representado pelo excessivo uso das especiarias e pelos sabores violentos e pouco sociais, como o alho, a cebola e os queijos demasiado picantes. Passava a triunfar uma cozinha artística, que agradava mais o sentido da visão que o do paladar propriamente dito. Pratos, candelabros com velas, saleiros, pirâmides de frutas, flores e outros enfeites eram colocados sobre a mesa com cuidado e atenção. O conjunto era planejado para dar uma sensação de opulência e abundância.
     
    Pintura de F. Snyders, do século XVII, retrata a fartura de alimentos reservada aos nobres. (Imagem: The J. Paul Getty Museum, Los Angeles)O comportamento também se tornava mais regrado. Da Idade Média à Idade Moderna, há uma evolução das chamadas “boas maneiras” à mesa. Os modos adotados durante as refeições vão ficando mais complexos e, pouco a pouco, são transmitidos da aristocracia para as massas. Através dos séculos, o processo civilizador pode ser visto como uma progressiva eliminação de respostas instintivas – como agarrar, arrotar, devorar, cuspir ou beber de modo barulhento – em favor de habilidades e vínculos adquiridos artificialmente, como a utilização de talheres específicos para cada iguaria, o uso incondicional do guardanapo, uma ordem rigorosa no serviço dos pratos e o asseio pessoal antes e depois da refeição.
     
    A história das normas de bom comportamento à mesa se entrelaça com aquela das boas maneiras em geral: diz respeito ao mesmo tempo à ética e à etiqueta, isto é, aos valores morais como aspectos internos e à aparência externa como expressão formal dos comportamentos do homem com seus semelhantes. Embora não sejam códigos do tipo jurídico, também impõem leis e podem ter sanções graves, como a reprovação por parte dos semelhantes e a exclusão do grupo do qual se faz ou se aspira fazer parte. As boas maneiras que cada comunidade coloca para si são um indício do conjunto de normas que forma o código moral daquele grupo. A mesa é o lugar que salienta o importante cruzamento entre o corpo e a alma, entre matéria e espírito, entre a exterioridade da etiqueta e a interioridade da ética. São duas as grandes preocupações no momento de se alimentar: conter o gestual do corpo e frear os impulsos da alma. 
     
    Outra tendência imutável é a gradual penetração dos gostos exclusivos das classes abastadas para as outras camadas sociais. Os mais ricos sempre buscam produtos restritos, enquanto os menos favorecidos aspiram poder consumir o mesmo. O que outrora repousava apenas sobre mesas nobres acabava tendo o preço diminuído com a descoberta de novas rotas comerciais e outros métodos de produção, possibilitando o consumo por um maior número de pessoas. A busca por elementos de distinção, no entanto, atravessa séculos e continua em vigor. Ontem, eram a pimenta-do-reino e o chocolate que ostentavam os privilégios de classe. Hoje, pode ser o caviar e a trufa. E amanhã? 
     
    Fabiano Dalla Bona é professor de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de “A arte de comer no Século das Luzes na Palermo de Dacia Maraini” (XI Congresso Internacional da ABRALIC, USP, 2008).
     
    Saiba Mais
     
    BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. 2. ed. Porto Alegre: Editora Zouk, 2013.
    CAMPORESI, Piero. Hedonismo e exotismo: a arte de viver nos séculos das luzes. Trad. Gilson C. Cardoso de Souza. São Paulo: Editora Unesp, 1996.
    ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. I. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
    VISSER, Margaret. O ritual do jantar: as origens, evolução, excentricidades e significado das boas maneiras à mesa. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1998.