- Em solo francês para uma visita diplomática, em 1999, o presidente do Irã Mohammad Khatami recusou-se a participar do banquete oferecido pelos anfitriões. O motivo estava no cardápio: os pratos seriam acompanhados por vinho. Embora isso fosse previsível devido à forte identificação dos franceses com o vinho, o iraniano decidiu respeitar a interdição islâmica ao consumo de bebidas alcoólicas.Não há sociedade que esteja livre deste tipo de preconceito alimentar, embora ocorram constantes mudanças nos hábitos das populações. Basta observarmos as inovações culinárias promovidas pelos grandes mestres de cozinha da história, como o francês François Pierre de La Varenne. Autor do tratado O cozinheiro francês e responsável pela cozinha do rei Henrique IV (1553-1610), La Varenne foi o inventor do molho bechamel e incorporou, em suas criações, ingredientes e alimentos estrangeiros como o caril indiano, o roast-beef, o caviar e a maionese, esta importada da ilha de Minorca, na Espanha.Toda criação culinária só se afirma quando encontra correspondência nos critérios de gosto locais. E a aceitação de novos ingredientes sequer é um processo homogêneo: enquanto alguns grupos permanecem apegados às próprias tradições alimentares, outros aderem às novidades com mais rapidez. Em todos os casos, a fome pode acelerar o processo.Historicamente, as migrações humanas são uma das maiores causas das novidades nas cozinhas ao promoverem o intercâmbio de ingredientes e maneiras de comer. Um período em que isso aconteceu de forma intensa foi o dos primeiros grandes impérios coloniais no período moderno. Eles foram um estímulo à transmissão de hábitos alimentares, difundindo plantas de cultivo, legumes e animais e colaborando para aprimorar o paladar de diferentes populações. Ao buscarem, a partir do século XVI, a integração de extensos territórios estrangeiros na Ásia, na África e nas Américas, os impérios europeus abarcaram populações que possuíam grande diversidade de costumes. A manutenção das conquistas dependia da capacidade das autoridades em garantir estabilidade a essa multiplicidade de grupos. Daí a necessidade de se respeitar, ao menos em parte, a cultura local.
Embora exista um fluxo constante de gostos e preferências a partir do centro, verifica-se também o movimento inverso, além da conexão entre lugares periféricos. É emblemático o papel desempenhado por Portugal: a primeira monarquia a fundar um império de dimensões globais foi não apenas transmissora de hábitos europeus a outros continentes, como responsável pela propagação na Europa de costumes dos povos do Novo Mundo – e também entre eles.
Se as preferências alimentares são uma das principais bases das identidades culturais, elas também se prestam à segregação: existe uma nítida identificação entre o consumo de alimento e a posição ocupada na escala social por seu consumidor. Em um primeiro momento, a relação entre dieta e estado social definia-se por um caráter quantitativo. De modo muito literal, o poder era medido pelo tamanho da porção servida. Com o tempo, passou-se a valorizar a dimensão qualitativa, sobretudo quando a sociedade de corte se estabilizou como o paradigma de sociabilidade. A sociedade do Antigo Regime era uma sociedade de ordem, na qual as qualidades e os atributos que assinalavam a distinção entre as pessoas deviam ser aparentes. Para a manutenção das hierarquias, era fundamental que se seguisse a etiqueta cortesã, o que incluía seus modos à mesa.Cada pessoa devia comer segundo o seu status, o que, para a cultura da época, respondia a uma necessidade fisiológica, fundamentada nos preceitos do médico grego Hipócrates (460 a.C.-375 a.C.). Aquele que não comesse de acordo com sua posição social podia comprometer sua saúde. Aos nobres eram reservados alimentos mais elaborados e refinados, enquanto os rústicos deviam consumir as opções mais grosseiras. O importante era respeitar a ordem natural das coisas e das pessoas.Em Portugal, existem alguns registros de parte do repertório alimentar destinado ao (supunha-se) delicadíssimo estômago aristocrático. São conhecidos ao menos dois receituários manuscritos. O primeiro deles é Um Tratado da Cozinha Portuguesa do século XV – Coleção de receitas, algumas bastante originais, para o preparo das mais variadas iguarias. O outro, do século XVI, é O Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria, que traz inúmeros vestígios da dinâmica cultural em que o Império português estava imerso, com alusões a especiarias orientais e de outros domínios ultramarinos.O primeiro livro de culinária impresso em Portugal é do ano de 1680. Chama-se Arte de cozinha e foi escrito pelo célebre Domingos Rodrigues, mestre de cozinhas da Casa Real no tempo de D. Pedro II, O Pacífico. A obra ganhou várias edições, o que demonstra seu refinamento diante do gosto aristocrático. Rodrigues apresenta diferentes tipos de pratos e sopas, além de tortas, pastéis, peixes para a quaresma, doces e frutas, bem como o modo adequado de preparação de banquetes para cada mês do ano. Atento às preferências de D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, rainha de Portugal nascida na França, ele também se dedica a notáveis elementos da culinária francesa.Foi no Século das Luzes que a França se tornou referência indiscutível em matéria de cozinha na Europa. Os novos preceitos gastronômicos aparecem com maior nitidez no livro Cozinheiro moderno ou nova arte de cozinha, de Lucas Rigaud. Publicada em 1780, a obra também alcançou edições posteriores. O francês Rigaud chegara a Portugal em 1744, a mando de D. Maria I, e ali foi naturalizado. Depois veio ao Brasil em companhia do então vice-rei, D. António Álvares da Cunha, fixando-se no Rio de Janeiro. Tendo servido nas principais cortes europeias – como Paris, Londres, Turim, Nápoles e Madri – ele se obrigou a escrever o Cozinheiro moderno em função das “impropriedades” contidas na Arte de Cozinha. Se, por um lado, o autor atualiza a cozinha portuguesa, libertando-a dos excessos da culinária barroca, por outro, apresenta algumas receitas idênticas às de Domingos Rodrigues.Ainda a respeito da literatura sobre a culinária em Portugal, vale atentar para um receituário manuscrito da primeira metade do século XVIII, de Francisco Borges Henriques, de quem pouco se conhece e que provavelmente foi cozinheiro pertencente a uma casa nobre. O manuscrito interessa por ser um receituário efetivamente experimentado pelo cozinheiro, uma vez que há inúmeros comentários a respeito das receitas.Assim como os tratados de culinária, também os tratados de medicina podem ser lidos como fontes a respeito dos hábitos e do repertório alimentar da sociedade do Antigo Regime. Caso emblemático é a Âncora medicinal para conservar a vida com saúde, editado em 1721 e de autoria de Francisco da Fonseca Henriquez, médico de D. João V. Neste livro, ele examina a alimentação de maneira ampla, insiste na sobriedade e reconhece que as dietas devem ser diferenciadas de acordo com cada idade. Trata do número de refeições ao dia, bem como seus horários – ambos variando de acordo com a categoria social de cada um. Grosso modo, resumiam-se ao jantar, que acontecia entre 11 da manhã e meio-dia, e a ceia, que deveria ser entre 9 e 10 da noite. O almoço (antes do jantar) e a merenda (antes da ceia) também foram incorporados como hábito por alguns. A recomendação geral era de moderação aos cavalheiros, relegando-se os excessos aos rústicos.Até mesmo o pão, considerado o alimento por excelência por ser comum a todos os homens, podia representar distinção social. Para Henriquez, enquanto o pão de centeio seria próprio para homens rústicos, em mesas nobres ele não deveria se fazer presente: para elas deveriam ser reservados pães feitos de trigo. Curiosamente, um dos episódios mais emblemáticos da Revolução Francesa, que marcou a derrocada das rígidas hierarquias de corte, teve o pão como ingrediente central: circulou o boato, no calor dos acontecimentos, que ao saber dos violentos protestos da população faminta por conta do aumento do preço do pão, a rainha Maria Antonieta teria sugerido que, na falta do alimento básico, os súditos comessem brioches. Cabeças rolaram para que surgisse uma nova sociedade. E com ela, novas culturas alimentares.Rubens Leonardo Panegassi é professor da Universidade Federal de Viçosa e autor de O pão e o vinho da terra. Alimentação e mediação cultural nas crônicas quinhentistas sobre o Novo Mundo (Alameda, 2013).Saiba maisHENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal: para conservar a vida com saúde. Texto modernizado por Manoel Mourivaldo Santiago Almeida et al. Revisão das traduções do latim por Leônidas Querubim Avelino. Prefácios de Cassio Ravaglia e Sérgio de Paula Santos. Revisão geral de Geraldo Gerson de Souza. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.MONTANARI, Massimo (org.). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: Estação Liberdade/ Senac, 2009.STRONG, Roy. Banquete. Uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.FilmeA festa de Babette (Gabriel Axel, 1987)
Cada prato em seu lugar
Rubens Leonardo Panegassi