- A partir da mesa e de tudo que a cerca, o ser humano construiu uma história que valoriza cada vez mais o momento de escolher, preparar e partilhar uma refeição. As receitas culinárias surgem como fruto desse processo. Além de uma orientação para o cozinhar, elas próprias são um produto cultural e histórico: produzem um conhecimento específico, o saber culinário, que é sistematizado em cadernos e livros de cozinha.Através da comida e dos rituais que envolvem sua preparação e o ato de servi-la, indivíduos e grupos percebem a si mesmos e à sua condição, refletindo a privação ou a fartura de alimentos por eles valorizados. Em nossa sociedade, o almoço familiar de domingo pode ser a ocasião de compartilhar uma refeição que se diferencie daquelas consumidas em dias de semana. Quase sempre se completa com uma sobremesa ou um bolo, como um fechamento para o “grande momento”. A arte de fazer bolos e a doçaria em geral são fundamentais para se entender a ligação afetiva que pode existir entre pessoas ou grupos e receitas culinárias.Deve-se buscar conhecer as práticas culinárias onde elas se efetivam: na cozinha, a partir do trabalho realizado por mulheres, no âmbito do cotidiano doméstico, desempenhando tarefas que não costumam ser valorizadas pelo seu caráter repetitivo e monótono. Ali as receitas são criadas, recriadas, transformadas o tempo todo. Mudam os alimentos selecionados, as técnicas culinárias, os utensílios, a forma de servir e consumir as refeições.
Os livros de cozinha utilizados por mulheres em Curitiba na primeira metade do século XX permitem analisar os hábitos e as práticas alimentares de segmentos daquela população. As mulheres tinham receio de se expor quando falavam de suas rotinas familiares, mesmo que fossem aquelas ligadas à cozinha e ao ato de cozinhar. Em sua maioria, reproduziam o discurso que desvalorizava o trabalho doméstico e as chamadas prendas do lar. A cozinha era para elas uma zona de silêncio e de sombra, dissimulada no detalhe indefinidamente repetido da vida comum.
Embora fossem as primeiras a achar que esse trabalho não tinha nenhuma importância, que era “coisa menor”, em geral essas mulheres gostavam do que faziam e sentiam-se orgulhosas de preparar os pratos mais apreciados por seus familiares. Nos livros pesquisados, há mais do que receitas. Encontram-se também conselhos e orientações sobre como cuidar da família. E nota-se uma ideia recorrente na época: a de que uma boa profissão para a mulher, afora o magistério, era ser doceira, trabalhando em sua casa, vendendo seus produtos entre amigas e conhecidas.Em uma série de entrevistas com senhoras que se utilizaram de livros de receita naquele período, elas relatam que em algum momento de suas vidas “fizeram doces para fora, para ajudar em casa” ou “para se divertir mesmo”. “Fazer doces [era] uma boa profissão para senhoras, para quem tinha boas relações. Mas para se tornar uma boa doceira profissional precisava de três coisas: trabalhar com prazer, ser caprichosa e não poupar na compra dos ingredientes”, afirma uma delas. “A doceira deve conhecer bem todos os componentes de um doce, para poder reconhecer os bons”, confirma outra.Nas tradições familiares da Curitiba antiga, a “cozinha das mães” tinha um papel extremamente importante. As preferências alimentares de cada um dos membros da família eram preservadas pela mãe. O trabalho do lar sempre significou afeto, dedicação e sublimação feminina em prol do bem-estar da família. Era recorrente a ideia de que um homem “se conquista através do estômago”. Os manuais de economia doméstica e a maioria dos livros de cozinha dos anos de 1900 a 1950 tinham por objetivo orientar mães e filhas nessa tarefa. Além disso, a educação formal reproduzia o discurso da época e também se voltava para a preparação da mulher para a vida do lar.Mudanças dos modelos de convivência familiar decorrentes da urbanização, como a inserção da mulher no mercado de trabalho e a incorporação de novas tecnologias – como o fogão a gás – não impediram que o lazer feminino se mesclasse com o trabalho doméstico, sendo difícil definir onde terminava um e começava o outro. A cozinha colaborava para essa simbiose: era o espaço da mulher, das refeições que ela preparava para a família ou os amigos.Nas décadas de 1930 e 1940 difundiram-se equipamentos, armários, utensílios e eletrodomésticos diversos, modificando o ambiente da cozinha em busca de mais conforto, racionalidade e praticidade.O conhecimento culinário sistematizado nos cadernos e livros de cozinha revela que a culinária efetivamente é uma arte, particular em algumas de suas características, mas universal enquanto fator de distinção entre os seres humanos. Esse saber, transmitido ao longo do tempo entre as mulheres da família, intra e entre gerações, relaciona-se também a sentimentos, memórias, pessoas e momentos das suas vidas. Algumas famílias até hoje têm seu livro de cozinha preferido, aquele que se tornou um clássico como depositário das tradições culinárias familiares.São os sabores e saberes que constroem uma ideia de cozinha ligada tanto à arte quanto ao afeto.Solange Menezes da Silva Demeterco é professora de História e Cultura da Gastronomia na Faculdade Opet.Saiba MaisMONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.STANDAGE, Tom. Uma história comestível da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.WRANGHAM, Richard. Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
De mãe para filha
Solange Demeterco