- A fome tem sido uma companheira fiel da humanidade ao longo de toda a história. E o medo de não ter o que comer, um dos maiores agentes transformadores. Fome e abundância são termos antagônicos e complementares. Manifestam-se de muitas maneiras e em muitos graus, porque tanto uma como a outra precisam ser consideradas nos âmbitos fisiológico, ecológico, econômico, sociocultural, político, moral, ideológico. E, também, segundo o momento histórico em que surgem.Em primeiro lugar, a fome é um fenômeno fisiológico. Um estado do sistema nervoso central geralmente associado a uma sensação complexa reconhecida como “necessidade de comer”. Esta condição, na qual os alimentos são desejados, desaparece assim que são consumidos. É quando se alcança a saciedade, ou a ausência de fome. Alimento é uma categoria genérica, mas as necessidades humanas, do ponto de vista nutricional, podem ser bem específicas. Além do ar e da água, devemos ingerir uma variedade de substâncias: hidrato de carbono conversível em glicose, gordura que contenha ácido linoléico, dez aminoácidos que constituem os componentes fundamentais das proteínas, quinze minerais, trinta vitaminas e fibras não digeríveis que ajudem a limpar o intestino. Essas necessidades nutricionais comuns a todos podem, porém, ser satisfeitas de diversas formas. Uma ampla variedade de combinações e padrões, utilizando milhares de alimentos diferentes, é capaz de proporcionar o mesmo objetivo principal: a sobrevivência.
A fome por falta ou escassez de comida pode ocorrer por diferentes razões. As exógenas são aquelas relativas às condições ecológico-climáticas próprias de uma região ou a calamidades naturais, como inundações, secas e pragas. As endógenas estão relacionadas a desigualdades estruturais e sociais, regimes políticos, conflitos étnicos, guerras, falta de infraestrutura, aumento dos preços.
As causas exógenas nos remetem às dimensões ecológicas e tecnológicas da fome e da abundância. O ser humano enfrenta as variações climáticas como se a história tivesse sido sempre uma sucessão de boas e más colheitas, como no episódio bíblico das “vacas magras e vacas gordas”. Deixar de ser refém dessas circunstâncias tem sido um grande anseio da humanidade. Daí vieram o controle do fogo, a domesticação das plantas e dos animais, a invenção da cerâmica e das diferentes formas de conservar ou prolongar a vida dos alimentos – como defumar, secar, fermentar e salgar. Tornar-se independente das condições naturais tem o significado de buscar alimentos seguros, garantidos e de fácil preservação.Se os cereais, os legumes e os grãos tiveram historicamente um papel tão importante nas refeições das classes populares europeias, foi fundamentalmente por sua facilidade de conservação. Se o sal, até a difusão das técnicas modernas de refrigeração, foi tão essencial nos regimes alimentares, foi porque conservava a carne, o pescado e outros alimentos. Quando os recursos técnicos não eram suficientes, ocasionando “estados de emergência” devido a uma geada ou a uma seca que estragava as colheitas, ou por conta de doenças que dizimavam os animais, a escassez dos alimentos habituais ocasionava a busca por soluções de urgência – como ervas e raízes desconhecidas, pães diferentes e carnes de todo o tipo – superando a neofobia própria dos onívoros.A prevenção da fome também deu lugar a estratégias de acumulação de alimentos. Para que isso se tornasse possível, foi necessário algum tipo de organização sociopolítica a fim de estimular um esforço de superprodução que ia além das necessidades imediatas, garantindo a posterior distribuição dos mantimentos. Em numerosas sociedades tradicionais, o armazenamento de comida para sua futura partilha era uma atitude essencial para a estratégia daqueles que aspiravam ser considerados “grandes homens” e “chefes”.O desenvolvimento dessas instituições sociopolíticas mais estáveis de fato amenizou a vulnerabilidade humana em face dos fenômenos naturais. A partir de então, as causas da fome seriam sobretudo endógenas. Historicamente, a gestão das reservas constituiu parte das responsabilidades dos governos, que a combinavam com políticas de aprovisionamento e exportação, racionamento, assistência social e regulação dos mercados – estabelecendo, inclusive, “preços políticos” para alguns alimentos. O objetivo era garantir à população o acesso a um mínimo necessário à subsistência, a uma vida decente e digna inclusive em períodos de escassez. Mas as “revoltas da fome” ao longo da história mostram que a gestão cotidiana dos provimentos é um desafio permanente entre governantes e governados. Os protestos populares evidenciam, também, um aspecto-chave do contrato social que liga toda autoridade política à sociedade que dirige: o direito à subsistência, ou seja, o acesso ao estoque alimentar em quantidade e qualidade suficientes. A incapacidade de garantir essa condição romperia a legitimidade do poder e justificaria a revolta do povo.Manifesta-se assim a intrínseca relação entre o direito à subsistência e a qualidade moral que devem ter a autoridade e a sociedade em seu conjunto – relação que foi consolidada em definitivo no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: o direito à alimentação.A Revolução Industrial aplicada à indústria alimentar permitiu, desde o final do século XIX, mas sobretudo a partir de meados do século XX (após as Guerras Mundiais), incrementar a disponibilidade de todo tipo de alimento. Depois de séculos de má nutrição persistente, nas sociedades industrializadas de hoje quase todo mundo come, e vive-se inclusive uma situação de superabundância. Chegamos a ponto de pensar se não estamos comendo demais. A preocupação dominante é agora de caráter qualitativo, o que se traduz em restrições à dieta. O problema central é o da regulação do apetite individual diante de recursos alimentares quase ilimitados. É um cenário de forte contraste com um passado não muito distante, quando a poupança e a frugalidade eram duas virtudes apreciadas, e a ênfase se colocava mais na produção do que no consumo.A abundância de comida apresenta problemas novos e de difícil solução, porque nossas atitudes e comportamentos ainda estão condicionados por uma cultura marcada pelo medo da fome. A opulência tem suas próprias e imprevistas limitações em forma de costumes alimentares, pois os mecanismos que incidem sobre o apetite humano são muito mais sensíveis do que os que acabam com ele. Com a fartura, os problemas de saúde mudaram: dos relacionados à desnutrição e ao raquitismo para aqueles associados à superalimentação. O sobrepeso é considerado um “fator de risco”, sendo necessária sua redução para prevenir muitos problemas de saúde. Uma nova forma de medo – o de estar gordo – desloca o medo atávico da fome. As prescrições das dietas de épocas passadas contrastam com as que são feitas atualmente. Antigamente, para tratar da maioria das doenças prescreviam-se alimentos “abundantes e suculentos”. Hoje, ao contrário, a recomendação é por regimes sempre restritivos. O valor moral atribuído à magreza é justificado em nome da saúde. O fato de nossos antepassados terem tido dificuldade de obter comida para engordar explica porque hoje ganhamos peso com tanta facilidade. A seleção natural nunca teve a oportunidade de optar pelas pessoas que, devido ao excesso de comida, tornavam-se obesas, prejudicando seus corações e suas artérias.Afirmar que a superabundância de alimentos e a obesidade são um problema para a sociedade contemporânea não significa que a escassez, as desigualdades e a fome tenham desaparecido. A segurança alimentar não foi definitivamente alcançada. As insuficiências nutritivas nas dietas das populações podem se agravar mesmo que a produção agrícola aumente mais rapidamente que a população. A estrutura social, política e econômica de uma sociedade influencia no aumento de uma crise, de modo que a penúria pode desembocar em fome ou, em alguns casos, em simples inanição – crises alimentares que têm ocorrido desde 2008, quando a demanda por biocombustíveis provocou até 70% de aumento no preço de alguns cereais.As desigualdades sociais que dizem respeito ao acesso, à distribuição e ao consumo de alimentos são surpreendentes. Estimativas da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) indicam que 34 mil pessoas morrem de fome todos os dias e 930 milhões sofrem desnutrição severa. Até mesmo nos países mais ricos, o direito à alimentação só se cumpre parcialmente. A Europa, por exemplo, não está isenta da desnutrição e da exclusão alimentar: 43 milhões de pessoas ainda estão nesta situação no continente. A precariedade socioeconômica e a desigualdade social aumentam sensivelmente desde 1990, e já estão afetando a saúde de boa parte da sociedade. Na Espanha, existem mais de 2 milhões de crianças na margem da pobreza, sendo que 26% estão em nível de precariedade e 13% sofrem privações. Enquanto isso, de acordo com dados da mesma FAO, 1 bilhão de pessoas estão superalimentadas e obesas.A crise trouxe à tona as fraturas do sistema atual e exige uma reflexão crítica sobre a viabilidade do modelo globalizado de alimentação industrial. Uma das faces desse contexto é o desperdício. Nos últimos anos, proliferam na imprensa manchetes e reportagens que chamam a atenção para o problema: “Sobram 15 milhões de toneladas de peso na humanidade”, “Comissão Europeia elabora um folheto com 10 conselhos para desperdiçar menos comida”, “Há quase 1 bilhão de pessoas desnutridas no mundo, mas seria possível alimentá-las com apenas uma parte da comida que se desperdiça nos países ricos”.A produção de alimentos atual é suficiente para saciar toda a população mundial. Diferentemente de épocas anteriores, hoje é possível ter uma nutrição adequada para todo mundo em relação à produção de cereais. Por que, então, a fome se insere na história da abundância? Por que ela persiste? Suas derivações têm sido constantes desde a pré-história, mas a crescente insegurança alimentar parece estar ligada ao sistema capitalista, à sociedade da afluência. O problema não é a falta de disponibilidade nem o volume da produção, e sim a forma como os alimentos são utilizados. Nem todos os grãos cultivados, por exemplo, vão para o consumo humano direto. Uma enorme parte é utilizada para permitir que a proteína animal chegue aos mercados. Para fabricar 1 quilo de carne de vaca, são necessários 16 quilos de cereais e soja. Nos casos do frango e dos ovos, são 6 e 3 quilos, respectivamente. Além disso, alimentos são jogados no lixo sem que cheguem aos estômagos de quem necessita. Somente nas residências da Europa, jogam-se fora alimentos que custam 100 bilhões de euros ao ano. Ainda que se considere esta cifra exagerada, o tema do desperdício não é, em absoluto, trivial. Dessa forma, seguimos uma trilha parecida com a de séculos atrás, onde permanecemos sem solucionar o problema de satisfazer as necessidades básicas de milhões de pessoas. Continuamos não garantindo o direito à alimentação.
Estima-se que, até 2050, o planeta Terra terá 9 bilhões de habitantes. Alarmadas, as pessoas se perguntam se haverá comida para todos. A resposta? Hoje, com o que se cultiva de alimentos, já existe a possibilidade de suprir este número. Acontece que o desperdício atinge, hoje, quase 50% do que é produzido. E isso acontece ao longo de toda a cadeia alimentar – da agricultura, da pecuária e do barco de pesca até os fogões das casas, passando pelos diversos canais de distribuição e pelos estabelecimentos dispendiosos que vendem comida preparada.Os avanços das ciências agrônomas e genéticas e suas aplicações tecnológicas têm contribuído de maneira eficaz para melhorar a produção e a produtividade dos alimentos em todas as regiões do planeta. Os cientistas têm feito bem o seu trabalho e, como toda a certeza, continuarão fazendo. Mas, também com toda a certeza, as crises continuarão aparecendo. E não necessariamente como consequência do crescimento demográfico. A segurança alimentar não depende somente de produção e produtividade. Fatores “sistêmicos” parecem ser muito mais importantes.A importância desses fatores se manifesta em algumas perguntas simples. Por que a Monsanto não suprime, nos contratos que estabelece com agricultores, a cláusula que os impede de reservar sementes para o futuro, em vez de obrigá-los a adquirir as sementes patenteadas a cada ano? Por que o Walmart obriga “seus” agricultores a destruir as plantações de cenouras que não cumprem com as medidas padronizadas impostas nos contratos? Por que alguns alimentos viajam desnecessariamente de uns territórios a outros quando um país importa o mesmo produto que exporta?Saber fazer perguntas assim, e lutar por respondê-las, pode ser um caminho para nos livrarmos do paradoxo injustificável: que exista fome sem precisar existir.Jesús Contreras é professor de antropologia na Universidade de Barcelona (Espanha) e diretor do Observatório da Alimentação (ODELA).Saiba MaisFAO. El estado de la inseguridad alimentaria en el mundo. Roma: Organización de las Naciones Unidas para a Agricultura y la Alimentación, 2004. Disponível em: ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/007/y5650s/y5650s00.pdfFAVREGA, Michelle; GERVAIS, Michel & LE BLANC, Colette. Le scandale de la faim: un défi éducatif. Paris: Fayard, 2012.STUART, Tristram. Waste: uncovering the global food scandal. Nova York: W. W. Norton & Company, 2008.ZIEGLER, Jean. El hambre en el mundo explicada a mi hijo. Barcelona: Muchnik, 2000.
Fome na abundância
Jesús Contreras (Tradução: Carolina Ferro)