- “Diz-me o que comes e te direi quem és”. Quando se trata de cozinhas particulares, a famosa frase do escritor e gastrônomo francês Brillat-Savarin ganha uma versão alternativa: “Diz-me o que comes e te direi de onde vens”. Alimentos, temperos e modos de preparo costumam ser fortes referenciais associados à população de um determinado lugar, seja pelos hábitos cotidianos, ou pelos pratos que acabam se tornando emblemáticos da região – a chamada “cozinha típica”.O “churrasco à gaúcha” é um caso particularmente interessante. No Rio Grande do Sul, ele é visto como a especialidade local, o prato por excelência da região. Associado à figura do gaúcho, é também uma manifestação eloquente daquela sociedade.A comida típica ou emblemática não precisa ser a do cotidiano. Ao contrário, é muito comum que seja aquela servida em dias especiais, a que necessita de um preparo paciente e trabalhoso. Para entrar no dia a dia, o prato típico ganha uma versão simplificada.O churrasco nasceu na região do pampa, nos primórdios da ocupação do atual Rio Grande do Sul, nos séculos XVII e XVIII. Era uma terra de conflitos, onde se chocavam os planos expansionistas de duas coroas europeias, Portugal e Espanha, e que envolviam a espoliação e a dizimação dos indígenas que ali habitavam. Na América não havia gado bovino, salvo o bisão americano, e também não se criavam ovelhas, porcos ou cavalos. Foram os europeus colonizadores que trouxeram os primeiros animais, e coube aos jesuítas a introdução dos bovinos no atual território gaúcho. Surgiram assim as Vacarias, reservas de gado para abastecimento alimentar das aldeias planejadas pelos padres da Companhia de Jesus.Com a dispersão das chamadas reduções jesuíticas pelos bandeirantes paulistas, o gado encontrou condições favoráveis para espalhar-se por grandes pastagens, reproduzindo-se a ponto de surgirem enormes rebanhos selvagens – o gado “xucro” ou “chimarrão”. Aos poucos, esta grande reserva foi ficando conhecida, em particular depois que os portugueses fundaram a Colônia de Sacramento na foz do rio da Prata. E acabou atraindo atenção para a região.O território era então percorrido por diferentes indivíduos e grupos: portugueses instalados em Sacramento, espanhóis de Buenos Aires, indígenas a mando dos jesuítas e até, ou principalmente, sujeitos que vagavam e vaqueavam por conta própria – eram os primeiros gaudérios, ou gaúchos. Eles também tinham as mais diversas procedências. Eram mestiços frutos do estupro de índias e da destruição de aldeias, ex-soldados portugueses e espanhóis, gente sem lugar ou trabalho nos povoamentos estabelecidos e aventureiros, “sem lei, sem fé, sem rei”. O nome gaúcho chegou a ser usado, nos primeiros tempos, como sinônimo de bandido.
O que interessava era o couro, obtido por meio da chamada “Preia de Gado Alçado”, a caça ao gado selvagem. Depois de abatido o animal, o couro e o sebo eram retirados para comercialização e a carne era consumida no local. O restante da carcaça ficava por ali mesmo, apodrecendo. A forma mais comum e fácil para consumo dessa carne era assá-la em fogo feito no campo, cortada em pedaços e colocada em espetos de galhos de árvore, sobre brasas ou perto das chamas. Comia-se com as mãos, com o auxílio de uma faca, muitas vezes sem sal ou usando as cinzas como tempero. Em breves linhas, este é o surgimento do churrasco gaúcho e brasileiro, que em sua forma básica permanece o mesmo até hoje.
No início do século XIX, Auguste de Saint-Hilaire observou os “hábitos carnívoros” dos habitantes da região, onde a carne de gado bovino representava o essencial da alimentação e era de tal forma abundante que muitas vezes era dada, e não vendida. Apesar de não utilizar a palavra churrasco, o francês escreveu que, por onde andou, viu a carne ser preparada na brasa, em geral acompanhada apenas por farinha de mandioca.O prato que ficaria diretamente associado aos habitantes da região nem sempre gozou de prestígio. Visto como algo rústico e grosseiro, não fazia parte das festividades oficiais até 1935, quando foi realizada a Exposição do Centenário Farroupilha. Na ocasião, o governador Flores da Cunha pediu que fosse preparada uma carne assada à moda gaúcha. Criou-se, então, um espaço para que os visitantes fossem servidos, o que acabou sendo o embrião da primeira churrascaria conhecida: a Santo Antonio, que existe até hoje.A prática mais significativa para as relações sociais, no entanto, é o churrasco feito em casa, que ganhou popularidade especialmente depois da Segunda Guerra. Existe até um verbo específico para isso: “churrasquear” é não apenas comer o churrasco, mas partilhar de um momento festivo de convívio social, fora do cotidiano do trabalho e das refeições apressadas. “Fazer um churrasco” é muito mais do que assar a carne. Significa envolver-se em toda a preparação do evento, junto a familiares, colegas ou amigos – desde a produção prévia e divisão dos custos e tarefas de cada um até a hora de comer em si. A quantidade deve ser farta, e é até bom que sobre carne, o que simboliza abundância. Oferecer um churrasco implica, inclusive para os mais pobres, mostrar prosperidade e estabelecer uma distinção social. O evento é reservado para ocasiões especiais, momentos de reencontro e de convivência entre participantes de um grupo, que reforçam os laços pela partilha da comida.Uma figura tem papel de destaque no churrasco: é o assador, aquele que em geral se encarrega de tudo o que concerne à carne (e somente a ela), desde a escolha dos pedaços até a limpeza dos espetos. O assador costuma ser homem (raras são as assadoras), o que pode estar relacionado aos códigos nos quais a carne vermelha seria um símbolo de virilidade, em oposição aos doces, mais associados às mulheres e às crianças. Por outro lado, ao colocar no centro da cozinha um papel masculino, o churrasco inverte a tradição que atribui às mulheres as tarefas culinárias.O assado deve ficar crocante na superfície e suculento no interior. É difícil conseguir este ponto e, por isso, a técnica do assador é fundamental. Um assado preparado no forno perde seus sucos, mas eles ainda ficam retidos na assadeira e servem para acompanhar a carne. No caso do assado feito no espeto, o suco precisa ficar retido no interior da carne, até porque num churrasco não pode haver outro molho além de seu próprio suco. Trata-se, portanto, de receita simples, mas que exige esmero técnico – o que faz de um bom assador alguém com prestígio local e sempre requisitado.Existem lugares públicos para fazer churrasco nos parques do Rio Grande do Sul, enquanto nas residências é comum haver um local especial para a churrasqueira, no fundo do pátio ou num canto da garagem. Nos prédios há churrasqueiras coletivas geridas pelo condomínio, e há alguns anos surgiu na região uma forma híbrida no mercado: apartamentos que possuem sacadas com churrasqueiras, geralmente acopladas à sala.Em qualquer domingo do ano e em qualquer cidade do Rio Grande do Sul e sul de Santa Catarina, espalha-se no ar um reconhecível cheiro de carne sendo assada, da gordura pingando nas brasas, da fumaça. É algo tão comum que os moradores nem sempre se dão conta, assim como não nos lembramos a toda hora da nossa própria identidade.Maria Eunice Maciel é professora de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora do artigo “Churrasco à Gaúcha” (Horizontes Antropológicos, 1996).Saiba MaisCASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.FLANDRIN Jean Louis & MONTANARI, Massimo. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. São Paulo: Editora da USP, 1974.
Nem toda carne assada é churrasco
Maria Eunice Maciel