Sabores sagrados

Luiz Antonio Simas

  • Recentemente, em um programa de culinária na televisão, a apresentadora preparou para o cantor e compositor Arlindo Cruz um prato que levava azeite de dendê. Ele recusou a iguaria com um argumento que, para muitos, pareceu inusitado: como praticante do candomblé, não poderia comer o alimento, pois o dendê é vetado para os filhos do orixá ao qual o artista foi consagrado. 
     
    Nas religiões afro-brasileiras, a comida está presente em praticamente todas as atividades ritualísticas. Portador de energia, compartilhado entre os homens e os deuses, o alimento certo fortalece o corpo e o espírito, e o errado age no sentido contrário.
     
    O ato de dividir alimentos com as divindades está presente em várias culturas e é parte constitutiva de importantes religiões. Ele se manifesta no Brasil com especial força nos candomblés. A prática, um dos fundamentos litúrgicos mais significativos do culto aos orixás, há muito ultrapassou os limites dos terreiros rituais e rompeu as fronteiras entre o sagrado e o profano – que para essas religiosidades não são dimensões antagônicas. A comida de santo chegou às mesas com força suficiente para marcar nossa culinária cotidiana e temperar de sabores a cozinha brasileira.
     
    A lista de pratos e temperos ofertados aos orixás é enorme. Tem abará, caruru, pipoca, canjica branca, axoxô (prato com milho vermelho e lascas de coco), feijoada, acaçá, omolokum (com feijão fradinho e ovos), acarajé, farofa, inhame, dendê, cará, pimenta, camarão seco, mel de abelhas e frutas diversas, entre outros. 
     
    Para se compreender a importância dos alimentos nos rituais, é necessário conhecer o significado do axé para os seus praticantes. O axé é a energia vital que está presente em todas as coisas e pessoas. Para que tudo funcione, essa energia deve ser constantemente potencializada. Nada acontece sem a reposição do axé, em um mundo dinâmico e sujeito a constantes modificações. E uma das formas mais eficazes de dinamizar o axé em favor de nossas vidas é justamente dando comida às divindades, que retribuem propiciando benefícios aos que a ofertaram. Cada divindade tem suas características, que em larga medida se expressam na personalidade de cada um de nós, os seus filhos, e encontram correspondência nos elementos da natureza, como o vento, o fogo, a água e a terra. Um alimento que dinamiza a energia de um orixá pode representar perda de axé se for oferecido a outro. 
     
    As comidas de Oxalá, por exemplo, não levam azeite de dendê e a ele não se oferecem bebidas destiladas – restrições observadas a partir de uma série de mitos primordiais sobre esse deus. Tais elementos desestabilizam a energia vital de seus iniciados, devendo por isso ser evitados. Já as comidas de Ogum podem perfeitamente levar azeite de dendê, que dinamiza sua força vital. Conhecer e saber fazer a comida certa para determinada divindade é, portanto, fundamental. 
     
    A casa de Batuque, da passagem do século XIX para o XX, é exemplar dos sentidos que a comunidade e a comunhão podem assumir nestes ritos religiosos. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Como o candomblé é uma religião fundamentada em ritos de iniciação dos praticantes e baseada na hierarquia, a preparação da comida deve ficar a cargo de uma sacerdotisa dedicada especialmente a esta função: a iabassê, matriarca que cozinha, cargo exclusivamente feminino. O local onde as refeições são preparadas é um espaço ritual da maior relevância, minuciosamente sacralizado. Os objetos utilizados normalmente são separados para preparar apenas as comidas de santo. A faca ou a colher de pau que caem no chão durante o preparo, a louça que quebra, o sal involuntariamente derramado são sinais que indicam os rumos desse processo, capazes de determinar que tudo deve ser refeito em bases diferentes. Em uma religião que transmite os saberes oralmente, a cozinha é também um espaço para a contação de histórias, a lembrança dos mitos e a transmissão das lições de ancestralidade. 
     
    Pode-se estabelecer uma comparação entre as funções das comidas e dos instrumentos de percussão nos rituais. Os atabaques conversam o tempo inteiro. Cada toque guarda um determinado discurso, passa uma mensagem específica, conta alguma história. O ogan (cargo iniciático masculino) tocador dos tambores precisa conhecer o toque adequado para cada divindade. O ritmo propiciador do transe para um orixá pode ser também o que afasta a energia de outro naquele momento. Exatamente como acontece com os alimentos. 
     
    Outra importante função da comida é a de promover a integração entre a comunidade dos terreiros e o público externo. Como o candomblé é fortemente marcado pelo segredo e pelos ritos fechados de conhecimento apenas dos iniciados, a festa pública do xirê é o momento em que os orixás baixam nos corpos das iaôs (filhas de santo) para representar, por meio das danças, dos trajes e dos emblemas, passagens de suas trajetórias míticas. Através da representação dramática, as histórias dos orixás são contadas, a comunidade se recorda do mito e tira dele um determinado modelo de conduta. Todas as festas públicas normalmente se encerram com farta distribuição das comidas sagradas para os presentes, em ampla comunhão que busca fortalecer o axé da coletividade e de todos os que se dispuseram, adeptos ou não da religião, a comparecer ao festejo.
     
    Uma das questões mais interessantes nos estudos sobre as religiões afro-brasileiras e as comidas de santo são as maneiras como esta culinária se adaptou, se transformou e se apropriou dos sabores locais. O jogo é de mão dupla: se há inúmeros pratos sagrados que saíram dos rituais para as mesas de casas e restaurantes, também são várias as receitas do cotidiano que chegaram aos terreiros dotadas de novos significados. A feijoada é exemplar neste caso. Historiadores indicam que a tradição de pratos que misturam tipos diferentes de carnes, legumes e verduras é milenar. O cozido português e o cassoulet francês partem deste fundamento de preparo. O feijão preto, por sua vez, é originário da América do Sul: de uso bastante conhecido pelos guaranis, seu cultivo disseminou-se pela África e Ásia a partir dos navegadores europeus. A farinha de mandioca, também de origem americana, fez percurso similar. O fato é que a feijoada desenvolveu-se no Brasil como um prato cotidiano e só depois chegou aos terreiros, passando a ser ofertado a Ogum, divindade do ferro, da guerra e das tecnologias. Normalmente, ela é acompanhada de cerveja, bebida vinculada a este orixá. 
     
    A mesma coisa pode ser dita sobre o milho, hoje cultivado em boa parte do mundo mas cuja origem é a América. Inúmeros povos nativos da região – como os astecas, os toltecas e os maias – atribuíam ao cereal uma origem divina: os mitos o vinculam diretamente à criação dos homens. Ao circular pelo mundo, o milho americano continuou sendo sacralizado por muitas culturas que se apropriaram dele. Ele é hoje base de alimentos importantíssimos da culinária dos candomblés: está presente, por exemplo, no axoxô de Oxossi, na pipoca de Obaluaiê, na canjica de Oxalá e nos alimentos de Ossain. 
     
    Certa vez, uma iabassê afirmou que todo alimento pode ser ofertado às divindades, bastando o conhecimento sobre as comidas e os temperos que se coadunam melhor com algumas energias. A diferença entre a nossa feijoada de cada dia e aquela consagrada nos terreiros, por exemplo, está sobretudo no modo de preparação: repleto de minúcias e evocações ao orixá. 
     
    Não há, portanto, como se tentar estabelecer uma fronteira rígida entre o sagrado e o profano que não seja constantemente reelaborada e readequada pelos contatos entre os povos e as circunstâncias de suas histórias. Os adeptos do candomblé, afinal, costumam dizer que Exu, o orixá do movimento, é o senhor da boca que tudo come. Mediante a evocação por gestos e palavras, qualquer alimento humano pode ser consagrado e ofertado a ele.
     
    Este texto deveria ter começado com Exu, o princípio de tudo. Termina rendendo-lhe reconhecimento para dizer que na mesa de santo o profano pode ser sacralizado, como dinâmica que potencializa e redefine a tradição, sem negá-la, e permite que os cultos afro-brasileiros continuem profundamente vivos entre nós. Qualquer alimento pode ser portador do axé. Basta que seja preparado por mãos sábias e oferecido, eis o detalhe crucial, às bocas certas.
     
    Luiz Antonio Simas é autor de Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros (Mórula Editorial, 2013).
     
    Saiba mais
     
    BARROS, José Flávio Pessoa de. Olubajé, o banquete do rei. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
    BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. (Cortar esse)
    LODY, Raul. Santo também come. Rio de Janeiro: Pallas, 1998.
    QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2011.