As letras do enforcado

Guilherme Pereira das Neves

  • Leitor em gravura europeia do início do século XIX. Na Bahia do final do século anterior, um grupo de procedência social simples, implicado na Inconfidência Baiana, era capaz de ler e escrever, o que não significou uma transposição literal dos ideais franceses para a Colônia. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Em 8 de novembro de 1799, junto com mais três condenados, morreu no patíbulo de Salvador, Bahia, o pouco lembrado Luís Gonzaga das Virgens. Como os demais, era acusado de conspirar contra a Coroa a fim de promover uma insurreição – aquela que ficaria conhecida como Inconfidência Baiana ou Conjuração dos Alfaiates.
     
    Tinha 38 anos. Antes da invenção da fotografia, a descrição de sua aparência registrava: homem pardo, estatura ordinária, cheio de corpo, rosto comprido, orelhas grandes, testa alta, olhos pretos, nariz afilado, boca rasgada, lábios grossos. Filho de português, mas neto de escrava, assentou praça com 20 anos. Desertou, porém, três vezes. Na última, vagou pelos sertões, onde conheceu uma personagem jamais identificada, que lia gazetas, comentava a situação na Europa e falava de igualdade entre os homens, como propunha a Revolução Francesa de 1789. Capturado em 1792, Gonzaga viu-se condenado a trabalhos forçados. No ano seguinte, o indulto geral, concedido pelo nascimento de uma princesa real, devolveu-lhe a liberdade. A partir de então, aqueles que o conheceram diziam andar em geral só, aparentando manias e melancolias. Em algum momento, ele próprio chegou a escrever a um eclesiástico que se sentia desamparado de todos os homens.
     
    Assim como Luís Gonzaga, muitos dos implicados no movimento de 1798 – diversos deles escravos – mostravam-se capazes de ler e escrever, algo pouco comum naquela época para alguém de condição social inferior como a deles. Igualmente raro foi a Devassa (o inquérito sobre a conspiração que o governador mandou abrir) sequestrar e preservar muitos papéis encontrados em poder dos envolvidos. Apesar das limitações, é através deles que se pode hoje vislumbrar um pouco da alma daqueles indivíduos insatisfeitos da Bahia ao final do século XVIII.
     
    De Gonzaga, apreenderam-lhe alguns textos. Em primeiro lugar, uma quantidade enorme de orações. Em segundo, um número avulso da Gazeta de Lisboa de 1797, que lhe viera às mãos, segundo disse, servindo de embrulho para um pouco de tabaco que comprara. E três curtas obras francesas, que circularam entre os implicados, graças a tradutor incerto. Uma delas, anônima, um tanto esotérica, foi atribuída – segundo Kátia Mattoso – por Jacques Godechot (1907-1989), respeitado historiador francês, à maçonaria ou a alguma outra corrente semelhante. As outras duas reproduziam discursos pronunciados por personagens secundários da Revolução Francesa, difíceis de compreender por quem não conhecesse muito bem os acontecimentos a que se referiam. Pobres de ideias originais e de argumentos lógicos, eram no entanto textos repletos de incitamentos emocionais. Em certo passo, por exemplo, referindo-se aos excessos da monarquia francesa, exclamava um deles que a escravidão “é a vergonha do ente nascido”, “a nulidade da vida”, “o opróbio da existência”.
     
    Se o cirurgião Cipriano Barata e o tenente Hermógenes, igualmente arrolados na Devassa, dispunham de mais de vinte livros cada um em suas casas, nem um só se achou em posse de Luís Gonzaga. A ausência de prelos na América portuguesa e o custo elevado do impresso constituíam com certeza as causas mais evidentes da circulação restrita dos livros, fazendo com que fossem substituídos, quando convinha, por cópias manuscritas. Na época, esse papel do manuscrito não era ignorado nem mesmo na Europa e pode ser entendido pela onipresença das reproduções fotostáticas nas universidades de hoje em dia.
     
    Mais significativas são as cerca de 90 folhas, também confiscadas, com anotações feitas pelo próprio Luís Gonzaga. Delas, constam cópias de documentos oficiais – como um alvará de 1791 sobre o tempo de serviço dos soldados – e inúmeras orações manuscritas, algumas das quais bastante longas, em latim, além de atos de contrição e preces diversas. Encontram-se igualmente várias receitas, ocupando cerca de três folhas, pelo menos duas extraídas de uma Pharmacopeia de Londres, elaborada por um certo Mister Appleby; a cópia de um soneto em honra do governador da Bahia; uma certidão do testamento do avô; diversos requerimentos e atestados do próprio Gonzaga; uma carta dele ao padre mestre frei Bento da Trindade e, finalmente, uma série de laudas que ora formavam uma espécie de diário, ora consistiam em observações avulsas.
     
    Algumas destas últimas se mostram completamente ininteligíveis, e todas apresentam um caráter confuso e desorganizado, mas o conjunto não deixa de ser revelador. Há contas, por exemplo, como o cálculo que faz do vencimento anual do soldado com base em diferentes valores do soldo diário; de suas receitas e despesas; e do uso de seu tempo durante 24 horas. Há informações disparatadas, como o nome dos bispos eleitos para algumas dioceses portuguesas, o registro da segunda edição de obra sobre a vida de Cristo, a constatação de que Copérnico nascera na cidade de Thorn, a designação pela qual eram conhecidos soberanos europeus (“Carlos XIII rei da Suécia, por antonomásia o invencível”) e o fato de que Luís XVI fora “morto aglotinado” [guilhotinado] em 1793. Certamente copiado de alguma obra, um longo trecho trata de figuras de sintaxe, como barbarismo, elipse, zeugma e silepse. Provavelmente compostas recorrendo a dicionários a que tivera acesso, três relações trazem o significado de palavras em hebraico e grego, vocábulos em português pouco usuais iniciados pela letra “a” e termos latinos de cunho sexual.
     
    Já o diário, mais concentrado em determinadas folhas, contém observações sobre ocorrências do cotidiano – como a visita à casa de alguém, o ter sido preso ou recolhido ao hospital, o licenciamento de uma ronda, o raio que caíra num convento, uma epidemia de tosse na cidade, as preces realizadas por causa dos desabamentos ocasionados pelas chuvas, uma desordem no Bonfim. Em alguns momentos, no entanto, o registro torna-se mais pessoal. É o caso quando anota, em meados de 1796, que principiara a “reforma da vida”, fazendo confissão geral; quando destaca a chegada à cidade, meses antes, do “Príncipe Embaixador do Dagomé, cavalheiro [sic] da Ordem de Cristo”, acompanhado de “seu intérprete, professo na Ordem de São Tiago”, acrescentando que “o dito Príncipe [é] homem preto, e o sobredito intérprete, homem pardo, natural desta cidade da Bahia”; e quando escreve, sem precisar o ano, que ouvira Dionísia, mulher de um certo Viana, “exemplar a seus escravos”, ao que se segue uma frase sem sentido, mas em que a palavra “mata” se repete duas vezes ao final.
     
    Apesar dos erros e das construções truncadas, parece claro que Luís Gonzaga era capaz de ler, escrever e contar com algum desembaraço. Leitor, porém, de poucos textos, que lia e relia compulsivamente, talvez em voz alta, para facilitar a compreensão. Se confiava em rezas e mezinhas, começava também a valorizar o saber, esforçando-se para aperfeiçoar seus conhecimentos. Traçou planos, fez anotações, copiou páginas de um manual de retórica, consultou dicionários. Chegou a manifestar dissidências, como ao escrever em passagem de seu diário que “a religião francesa em geral venero”. De acordo com estudos de história da leitura, tendia, dessa maneira, a descortinar novos horizontes. Quebrava a rotina imemorial, característica das culturas majoritariamente orais, e passava a distinguir entre presente e passado, podendo conceber a ideia de utopia, ou seja, a busca de um futuro melhor. Por outro lado, mergulhado em ambiente social e cultural completamente diverso, faltavam-lhe os instrumentos mentais para compreender a fundo os textos franceses que guardava. A escravidão da França em 1789 não era a dos escravos castigados na América em 1798. E tudo isso não eram luzes francesas, mas descontentamentos baianos.
     
    Então, de suas letras, o que fez Luís Gonzaga? De um lado, elas conscientizaram-no das injustiças da sociedade em que vivia. Do outro, com boa probabilidade, levaram-no a redigir os 13 pasquins que apareceram afixados nas paredes de Salvador em agosto de 1798, incitando o “povo bahinense” a fazer sua “memorável revolução”. Preso e acusado, negou tudo. Tentou passar por demente. Sem sucesso, atado a uma cadeirinha, acabou conduzido até a praça da Piedade, onde foi enforcado e esquartejado. A cabeça e as mãos ficaram espetadas cinco dias no local.
     
    A tragédia de Luís Gonzaga é a das letras entre nós – até hoje.
     
    Guilherme Pereira das Neves é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de “Bahia, 1798: uma leitura colonial da Revolução Francesa (a propósito da tradução portuguesa de um texto de Jean-Louis Carra)”. Acervo, Rio de Janeiro, v. 4, p. 121-125, 1989.
     
    Saiba mais
     
    BAHIA. Arquivo Público do Estado. Autos da devassa da Conspiração dos Alfaiates. FLEXOR, Maria Helena O. (ed.). 2 vols. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo / Arquivo Público do Estado, 1998.
    GOODY, Jack & WATT, Ian. As consequências do letramento. Trad. de Waldemar Ferreira Netto. São Paulo: Paulistana, 2006 [1963].
    SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “Conflitos raciais e sociais na sedição de 1798 na Bahia”. In: ARAÚJO, Ubiratan Castro de et al. II Centenário da sedição de 1798 na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1999. p. 37-49.
    TAVARES, Luís Henrique Dias. História da sedição intentada na Bahia em 1798 (“A conspiração dos alfaiates”). São Paulo / Brasília: Pioneira / INL, 1975.