Conspiremos todos, punam-se alguns

Patrícia Valim

  • “Animai-vos, povo bahinense, que está para chegar o tempo feliz da liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais”. Afixadas nas ruas de Salvador na manhã de 12 de agosto de 1798, estas palavras, como as de outros dez boletins manuscritos, anunciavam uma revolta com características inéditas no Brasil até então.
     
    Assinados por “anônimos republicanos”, membros do “Partido da Liberdade”, os chamados “Avisos” eram uma estratégia de propaganda política contra a Coroa portuguesa. O “Aviso nº 9”, por exemplo, informava que, dos 676 adeptos da revolta, 513 faziam parte das corporações militares: 187 eram oficiais inferiores e soldados da Tropa de Linha (oficiais pagos) e 326 pertenciam às milícias (compostas por pessoas comuns). O segundo grupo mais numeroso era composto por clérigos: oito frades beneditinos, 14 franciscanos, três barbadinhos, 14 terésios e 48 clérigos seculares. O restante dividia-se entre 20 homens “do comum”, 13 de letras, oito comerciantes e oito “familiares do Santo Ofício” (auxiliares civis da Inquisição). 
     
    A ausência de escravos na lista desse boletim parece sugerir que uma eventual adesão da população à revolta não abalaria as estruturas da sociedade baiana alicerçada no escravismo. Esta hipótese relaciona-se também com a palavra de ordem da revolta, expressa na maioria dos boletins manuscritos: “O povo bahinense ordena, quer e manda que seja feita no futuro a sua digníssima revolução”. A Coroa portuguesa encontrava-se em posição delicada em relação às potências europeias e encarava o risco de ter abalados seus domínios coloniais – possibilidade aberta pelas implicações da Independência Americana (1776), da Revolução Francesa (1789) e da Revolução Escrava em São Domingos (1791). Explicitar que a revolução desejada seria “feita no futuro” era um sofisticado mecanismo de negociação política entre parte dos revoltosos e representantes da Coroa portuguesa, além de tranquilizar a população quanto a uma eventual ruptura de natureza revolucionária. 
     
    Mas o fato é que em Salvador o príncipe D. João (futuro rei D. João VI) viu-se alvejado por críticas pouco conservadoras, diferentes das revoltas anteriores na colônia, nas quais o poder régio era preservado. Os revoltosos de 1798 elaboraram um claro ataque ao príncipe regente, chamando-o de “Indigno Coroado”, que governava por meio de “Despóticos Ministros”. Escolheram a França como a principal nação que encontraria porto aberto para o “livre comércio” com a futura “República Bahinense”. Anunciaram a revisão da abusiva cobrança de impostos e outras medidas para dinamizar o comércio de pau-brasil, tabaco e açúcar, principalmente. Reivindicaram aumento do soldo para 200 réis diários, isonomia nos critérios de ascensão na hierarquia militar e o mérito para os postos mais elevados e para a escolha dos clérigos que comandariam a religião local. 
     

    “Uniforme do Regimento dos Henriques Milicianos”, 1802. Gonzaga das Virgens, miliciano mulato e pobre, acabou preso no início das investigações, sendo considerado um dos líderes do movimento. (Imagem: FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL)

    As autoridades desconfiavam que essas demandas tinham sido elaboradas por homens importantes de Salvador. Após a divulgação dos “avisos” pelas ruas, o governador da capitania, D.. Fernando José de Portugal e Castro, ordenou a abertura imediata de uma investigação para descobrir o autor de “tão odiosa empresa”. Pediu ajuda do seu homem de confiança, José Pires de Carvalho e Albuquerque, secretário de Estado e Governo do Brasil, e nomeou para a investigação os desembargadores Francisco Sabino da Costa Pinto e Manoel Magalhães Pinto e Avellar de Barbedo, do Tribunal da Relação da Bahia. Os três vinham sendo denunciados por “ausência de limpeza de mãos”. 
     
    Eles se reuniram na Secretaria de Estado para comparar a letra dos boletins manuscritos com algumas petições dos milicianos. Como o órgão continha a documentação de todas as corporações e setores sociais, rapidamente os desembargadores concluíram que o autor dos boletins era o mulato livre Domingos da Silva Lisboa, requerente no Tribunal da Relação. 
     
    Uma semana depois, duas cartas consideradas tão “sediciosas” quanto os boletins foram encontradas na Igreja do Carmo: uma delas anunciava que o governador seria o chefe supremo da “República Bahinense”, a outra nomeava o prior dos carmelitas descalços como chefe supremo da Igreja local. As autoridades novamente se reuniram para examinar a caligrafia do material, concluindo que as cartas eram de autoria de Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, miliciano mulato e pobre, preso no mesmo dia. Esse episódio desencadeou denúncias sobre uma reunião que estava sendo organizada no Dique do Desterro para “ajustarem o modo, meio e ocasião em que haveria ter efeito a projetada revolução”. O encontro foi abortado pelas autoridades. O que se seguiu foram duas investigações simultâneas e cheias de artimanhas políticas para descobrir os participantes do movimento. 
     
    Foram abertas duas devassas (processos criminais). Após a prisão dos primeiros acusados, as autoridades chamaram cerca de 50 pessoas para prestarem depoimento: brancos, livres, a maioria homens com alguma posse, alguns com grandes propriedades. Suas declarações resultaram na prisão de 38 pessoas, muitas das quais milicianos. À certa altura do inquérito, foram denunciados nomes de poderosos. Dois deles foram chamados pelas autoridades e como denunciantes determinaram o rumo das investigações. O primeiro, Francisco Vicente Viana, era branco, ouvidor, juiz dos Órfãos e Ausentes, proprietário de engenhos, e após a independência do Brasil foi o primeiro presidente da província da Bahia. O segundo, Manoel José Villela de Carvalho, era branco, solteiro, tesoureiro da Real Fazenda, negociante e também dono de engenho. Ambos estavam envolvidos no tráfico de escravos e em negócios promíscuos com o governo local. Segundo eles, os protagonistas da “projectada revolução” eram homens livres, pobres e mulatos. E o “cabeça” era o miliciano mulato Luís Gonzaga das Virgens. 
     
    O tesoureiro da Real Fazenda contou pessoalmente ao governador sobre o episódio que ele chamou de “pronta-entrega de escravos”: o secretário de Estado e Governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albuquerque, passou na casa de outros sete proprietários para recolher escravos que deveriam prestar depoimentos que os isentassem de qualquer participação em reuniões de caráter sedicioso. 
     
    O grupo de senhores dos escravos entregues à Justiça era composto por pessoas de “opulência e luzimento”, a maioria envolvida no tráfico de escravos. José Pires Albuquerque era o mais notável e articulador político dos demais: dono do Solar do Unhão, de nove engenhos de açúcar, de fazendas de gado e plantações de tabaco, ele serviu nos mais altos postos do governo local. Foi também um dos maiores credores da Coroa portuguesa naquele final de século. Seu prestígio político e econômico explica as razões pelas quais articulou pessoalmente o movimento de “pronta-entrega de escravos” à Justiça, bem como ele ter sido chamado a “colaborar” nas investigações da revolta com os exames de caligrafia para descobrir os réus.
     
    Mas se ele e seu grupo tinham tanto dinheiro e poder, por que participaram da revolta? 
     
    Até 1796, a relação entre metrópole e colônia contemplava tanto os anseios estatais quanto os privados. Por um lado, havia os privilégios e os monopólios, que garantiam a centralização política e a expansão ultramarina. Por outro lado, havia o sistema de arrendamentos ou contratação de serviços, funções e comercialização de produtos por particulares. Ao se transformarem em parceiros privados da Coroa portuguesa, o grupo de contratadores, rendeiros e monopolistas, muitos ocupando cargos estratégicos na administração pública, sedimentou seu poder e influência na Bahia. 
     
    Esse status passou a ser ameaçado com a possibilidade de implantação das reformas do ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho: maior controle da produção, do tráfico e do sistema de arrendamento pela Coroa portuguesa, incluindo a entrada de outros agentes nessas esferas, com consequente perda de privilégios, além de impostos mais justos, com ricos pagando mais e pobres pagando menos. As queixas em relação à tentativa de reformas transparecem em vários depoimentos, como o de José Felix, escravo do ouvidor Francisco Vicente Vianna, autor de uma das denúncias. Se as autoridades não levaram adiante essas informações, é porque não interessava à Coroa romper os laços com um setor que lhe dava base para a exploração colonial na principal capitania da América Portuguesa. 
     
    Embora os cativos não tenham sido listados entre os participantes da conjuração nos boletins, não resta dúvida de que eles aceitaram colaborar com armas em punho, quando os milicianos lhes perguntavam: “Estima a liberdade e ser forro?”. Dos 11 escravos presos, um foi morto por envenenamento a mando do seu senhor. Os demais participaram ativamente das investigações. Quase todos eram mulatos, nascidos no Brasil (apenas um era africano e de propriedade de um dos réus enforcados), sabiam ler e escrever e mantinham relações de proximidade e compadrio com seus senhores. 
     
    Ao final de seus relatos, reafirmaram as denúncias dos dois senhores de engenho, acusando quatro homens livres, pobres e mulatos de serem os cabeças do movimento. Os milicianos apontados pela maioria das testemunhas assumiram que estavam descontentes e que conversavam sobre isso em reuniões. João de Deus do Nascimento, Manoel Faustino, Luís Gonzaga das Virgens e Veiga e Lucas Dantas de Amorim Torres falaram sobre a participação de um grupo de poderosos nessas reuniões, mas as autoridades novamente desconsideraram as informações. Eles foram condenados à pena última por crime de lesa-majestade. Na manhã de 8 de novembro de 1799, foram enforcados e esquartejados na praça da Piedade, em Salvador. 
     
    A execução dos quatro homens livres, pobres e mulatos encerrou um movimento político que já foi qualificado, com alguma poesia, como a “primeira revolução social brasileira”, nos termos do historiador Affonso Ruy. No campo político e ideológico, a Conjuração Baiana de 1798 inaugurou a tradição de criminalizar e desqualificar os movimentos sociais com participação popular e demandas políticas mais igualitárias. Ao mesmo tempo, demonstrou a capacidade das elites locais em estabelecer todo tipo de aliança e negociação para se manterem no poder, com o objetivo de se locupletar do estado patrimonialista e barrar qualquer tentativa de reforma política e tributação justa. Passados 217 anos do trágico fim daqueles quatro homens, a nossa primeira revolução social ainda está para ser feita. 
     
    Patrícia Valim é professora da Universidade Federal da Bahia e autora da tese “Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798” (USP, 2013). 
     
    Saiba Mais 
     
    JANCSÓ, István. Na Bahia contra o Império: história do ensaio de sedição na Bahia de 1798. São Paulo: Hucitec, 1996. 
    MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Da Revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX. Salvador: Corrupio, 2004.
    TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição intentada na Bahia em 1798 (A Conspiração dos Alfaiates). São Paulo/Brasília: Pioneira/INL, 1975.