Ela era utilizada por psicólogos, anestesistas, médicos e cientistas em geral. As principais revistas especializadas publicavam artigos recomendando seu uso para o tratamento de farmacodependências. Diziam ser um estimulante incapaz de danos secundários, ideal para exaltar o humor, espantar a depressão e “deixar as damas plenas de vivacidade e charme”. Ao contrário do uso “científico” que caracterizou o momento de descoberta da cocaína pelo Ocidente, na virada do século XIX para o XX, o consumo recreativo da substância foi a grande marca de seu ressurgimento no início dos anos 1970.
Diferente da maconha e do LSD, que eram associados pela comunidade científica aos grupos de contracultura, nessa época a cocaína era considerada um psicoativo leve, incapaz de causar dependência física. E seu alto custo lhe trouxe uma rápida reputação: virou a droga das elites, carregando uma imagem de algo desejável por toda a população que almejava ascender socialmente.A nova geração que nascia durante os anos efervescentes do movimento hippie – mas que era ideologicamente oposta a ele – foi forjando um estilo de vida que acabou se associando à cocaína. Essa nova leva de jovens ficou conhecida como yuppies (young urban professionals). Eram profissionais bem-sucedidos e totalmente integrados ao sistema de produção vigente. Tinham empregos invejáveis e salários milionários.A cocaína virou o símbolo dessa turma na década de 1970. Era a droga ideal para os chamados workaholics, ou viciados em trabalho que, além de se identificarem com os ícones do consumismo, impulsionavam de maneira decisiva a economia americana rumo à sua posição de hegemonia no cenário internacional.Naquele tempo, o consumo de cocaína inalada não era visto de maneira depreciativa, como algo degradante. Pelo contrário, sua fama era de prover energia, autoestima e ambição social, atributos essenciais para os jovens executivos. No Brasil, a substância era consumida por intelectuais, políticos, jornalistas e ainda embalava as noites nas discotecas das grandes cidades.A grande mudança de paradigma aconteceu no final dos anos 70, quando traficantes colombianos introduziram crescentes quantidades de cocaína em território norte-americano, aumentando a disponibilidade e reduzindo o preço do produto. Eles utilizavam a experiência anterior no contrabando de ouro e esmeraldas, e aproveitavam as conexões já existentes por conta da distribuição da maconha.O narcotráfico colombiano ficou conhecido pela produção e distribuição da cocaína mundo afora, atingindo graus avançados de organização. Como um dos resultados disso, a fama do psicoativo virou de ponta-cabeça: passou de uma droga de elite, associada ao poder e ao triunfo no mundo capitalista, para uma substância utilizada por populações excluídas e com um grande potencial destrutivo. Essa mudança em sua representação foi impulsionada também pelo impacto que teve a rápida popularização de um de seus derivados: o crack.O hábito de fumar a pasta de folhas de coca era praticamente desconhecido antes dos anos 70. A partir daí, começou a ganhar popularidade no Peru, espalhando-se para os outros países produtores no decorrer da década. O consumo do crack tinha caráter compulsivo. Além de gerar fissura, a falta de um refino deixava-o com um preço acessível. Isto atraía novos usuários de estratos sociais mais baixos, que pagavam por dose. Para manter o consumo, acabavam fazendo inúmeras transações ilegais.O comércio do crack, assim como o da cocaína, deteriorou e desestabilizou a economia de bairros onde as vendas se concentravam. O problema era maior por conta da ausência do Estado como provedor de políticas sociais e de segurança: sua atuação era exclusivamente como agente repressor e estigmatizador do tráfico e dos usuários.O exemplo mais emblemático disto foi a cidade de Los Angeles, na Califórnia, no final dos anos 1980. O crescente comércio de drogas associado ao descomplicado acesso a armas de fogo – facilitado pela Constituição americana – fez delas o principal meio para os membros das gangues garantirem autoproteção, resolverem as disputas de mercado, defenderem os produtos e ativos ilegais, além de lhes conferirem status e poder na comunidade onde atuavam.O caso da heroína, no entanto, foi diferente. Por não existir uma distribuição tão eficaz quanto a dos cartéis colombianos, a substância não teve propagação tão ampla nos EUA e na América do Sul. Ficou restrita à Europa e a alguns países da Ásia e do Oriente Médio. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, seu uso é considerado irrelevante.Sintetizada a partir da morfina, a droga nem sempre foi encarada como problema. Era comercializada livremente em farmácias pela empresa alemã Bayer, que a explorou a partir de 1862 como medicamento para várias infecções respiratórias, contra asma, diarreia e até para induzir o sono das crianças – mesma empresa, aliás, que explorou a cocaína.Seu nome é proveniente da palavra alemã “heroische” (heroico), pois acreditava-se no potencial de cura quase milagrosa que tinha. Chegou a ser considerada uma solução para os viciados em morfina. Jornais, revistas e propagandas lúdicas frequentemente exaltavam as maravilhas da recente descoberta. Mas rapidamente a heroína se tornou questão de saúde pública. Em 1920, a própria associação americana de médicos solicitou sua proibição por ter caráter altamente viciante.O consumo por meio intravenoso, com o auxílio de uma seringa, parece nunca ter sido aceito socialmente, e foi com frequência associado ao modo de vida Junkie. O termo, aliás, também denomina os viciados em heroína, que muitas vezes eram confundidos com delinquentes. A injeção é o meio preferido dos consumidores devido ao efeito de prazer súbito, conhecido como “orgasmo abdominal”.A inalação da substância é realizada em contextos em que a disponibilidade de seringas e agulhas é menor. Desempregados, pequenos bandidos e moradores de ruas que perambulam pelas calçadas em busca da próxima dose passaram a caracterizar o usuário de heroína. Ele era facilmente reconhecido pelas manchas vermelhas na pele, provocadas pelas constantes aplicações feitas, em geral, sem nenhum tipo de cuidado higiênico.Outra substância considerada inofensiva em um primeiro momento, mas que se espalhou rapidamente no final dos anos 1980 pelos EUA e a Europa, foi o ecstasy – ou MDMA (de metilenodioximetanfetamina). Ele foi descoberto por acaso em 1912, a partir de uma tentativa frustrada de um grande laboratório, a empresa alemã Merck, de produzir um remédio para emagrecimento.A droga começou a ser consumida de forma recreativa, principalmente entre jovens que frequentavam festas noturnas no início da década de 1980. Impulsionado pelo novo estilo sonoro que ficou conhecido como “música eletrônica” ou “tecno”, o uso do ecstasy deu origem às chamadas festas rave. Inicialmente difundido pela Europa, cresceu ao longo da década de 1990 com a popularização da música eletrônica e da cultura dance.Ganhou a alcunha de “droga do amor”, por provocar uma descarga do neurotransmissor serotonina, responsável pela sensação de prazer, e por gerar uma exagerada euforia. Estas características fizeram com que, nos anos de 1970, um grupo de pesquisadores americanos utilizasse a substância como um poderoso recurso psicoterápico. Paralelamente, segmentos espirituais, como alguns discípulos do indiano Osho, também adotaram o MDMA em práticas de meditação, ioga ou tantra, na busca de um tipo bem particular de êxtase religioso.No Brasil, no início dos anos 90 chegavam as primeiras remessas consideráveis de ecstasy vindas da Europa. A partir daí, tem crescido o número de usuários, assim como a importância dada pelos meios de comunicação ao assunto. Ao longo dos anos 2000 houve um vertiginoso aumento de consumo da substância, estimulado pela popularização da música eletrônica, que se tornou um dos principais movimentos culturais da primeira década deste novo milênio.Foi também a partir desse período que houve um crescimento generalizado de outras drogas sintéticas. Dessa vez, lícitas. São os medicamentos prescritos que, através de potentes compostos químicos, induzem no consumidor o desenvolvimento de capacidades para lidar com os padrões de um capitalismo ainda mais sofisticado pela tecnologia. Se na década de 1980 a cocaína foi a substância que melhor se associou aos valores desse sistema, agora os remédios encontrados nas farmácias prometem acabar com a preguiça, com o déficit de atenção e qualquer outro sintoma que vá contra a lógica e o tempo da produção. É como um milagre. Que, como mostra a história, pode ter prazo de validade.Tiago Coutinho é autor da tese “Xamanismo da floresta na cidade: um estudo de caso” (UFRJ, 2011) e do artigo “Do êxtase religioso ao ecstasy festivo: uma análise simbólica e performática dos festivais de música eletrônica”. Religião & Sociedade, v. 26, p. 135-156, 2006.Saiba Mais:ESCOHOTADO, Antônio. Historia elemental de las drogas. Barcelona: Anagrama, 2000.SAUNDERS, Nicholas. Ecstasy e a cultura dance. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.Filmes:O lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2014)Trainspotting – Sem Limites (Danny Boyle, 1996)Last Hippie Standing (Marcus Robbin, 2002)
Doces venenos
Tiago Coutinho