“Eu nunca me senti tão bem em minha vida. Que tal um cigarro?”. A frase é uma das últimas do filme As areias de Iwo Jima (1949), estrelado por John Wayne. Ele interpreta o sargento Jonh M. Stryker, que na cena oferece cigarros aos companheiros eufóricos pela famosa conquista da ilha japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Pouco depois o sargento é baleado.
Quando a película veio a público, os produtores de Hollywood tinham plena consciência dos efeitos ornamentais do cigarro e de sua importância durante as duas Grandes Guerras. Em Casablanca, que estreou ainda no período do segundo conflito mundial (1942), Humphrey Bogart tornara-se o modelo norte-americano de fumante, reunindo características tidas como positivas e necessárias em momento tão difícil: o personagem Rick Blaine era corajoso, discreto, cínico e forte, e usava o cigarro para disfarçar seus sentimentos.Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, as virtudes atribuídas ao cigarro não foram uma criação do cinema. Décadas antes de aparecer nas mãos e nas bocas de atores e atrizes famosos, o cigarro teve que vencer resistências, tanto dos opositores do tabaco quanto de usuários de outros produtos derivados da planta – como charutos, cachimbos e fumo para mascar. A mudança começou em 1881, quando, depois de várias tentativas de mecanização, o inventor norte-americano James Albert Bonsack desenvolveu uma eficiente máquina de enrolar cigarros, capaz de produzir mais de 200 unidades por minuto. A indústria tabagista adquiria potencial sem precedentes para aumentar a produção. Para ser bem sucedida, faltava conquistar mais consumidores.Foi o que percebeu o norte-americano James Buchanan Duke (1856-1925), um genuíno empreendedor no ramo do tabaco. Ele investiu numa publicidade moderna, com novas técnicas de marketing e de promoção. Entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do XX, as estratégias mais comuns foram o patrocínio de corridas, os concursos de beleza, a distribuição gratuita de cigarro, anúncios em revistas ilustradas de modas e a entrega de prêmios, cupons e cartões colecionáveis com os maços de Cameo, Cross Cut e Duke’s Best. O material promocional fazia referência a esportes, aventura, generais da Guerra Civil norte-americana, moda e beleza. Nos cartões de brinde havia desenhos de bandeiras e selos estrangeiros e de atrizes usando roupas de outros países, ou simplesmente seminuas.Até então o cigarro representava somente 5% dos produtos derivados do tabaco no mercado norte-americano. Havia várias campanhas contrárias e restrições legais ao produto. Em 1900, os estados americanos de Dakota do Norte, Iowa e Tennessee haviam proibido totalmente a venda de cigarros; nove anos depois, Kansas, Minnesota, Dakota do Sul e Washington também tomaram medidas proibitivas. Em 1916, o industrial Henry Ford, preeminente apoiador da campanha antifumo, publicou um compêndio com material antitabagista (The Case against the Little White Slaver) e prometeu não contratar fumantes em sua fábrica. À noção difundida de que o hábito de fumar era uma ofensa moral e cultural somou-se a convicção de que os jovens tornavam-se delinquentes e cometiam crimes devido ao cigarro.Ainda assim, as vendas começaram a crescer. A transformação cultural em torno do produto aconteceu, sobretudo, a partir da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, em 1917. Campanhas contrárias ao fumo começaram a soar puritanas e desajustadas ao momento. A frase emblemática desse período veio do general John Joseph Pershing, comandante da Força Expedicionária Norte-Americana. Perguntado sobre o que poderia ser feito pela nação para ajudar os Estados Unidos no conflito mundial, Pershing foi categórico: “Você me pergunta o que nós precisamos para vencer esta guerra. Eu respondo tabaco tanto quanto balas”. No campo de batalha, o cigarro ajudaria o soldado a suportar o tédio da guerra, poderia firmar mãos nervosas, acalmar feridos e até encorajar a tropa.Prontamente, organizações antes contrárias ao cigarro, como a Cruz Vermelha e a Associação Cristã de Moços, começaram a distribuir tabaco e café aos combatentes. Entre estes, a camaradagem passou a ser simbolizada pelo compartilhamento de cigarros. A maioria dos países envolvidos na guerra providenciava tabaco para os seus soldados. Cada britânico no front, por exemplo, recebia sete cigarros por dia como parte de suas rações.No período entreguerras, também as mulheres foram alvo da indústria do tabaco. Seduzidas por uma campanha de publicidade contratada pela British American Tobacco (BAT) e idealizada por um sobrinho de Sigmund Freud, o austríaco Edward Bernays, as mulheres norte-americanas começaram a fumar sem maiores censuras sociais e legais ao final da década de 1920. Bernays associou o ato de fumar à liberdade desejada pelas feministas. Em março de 1929, organizou uma marcha de jovens mulheres na 5ª Avenida, em Nova York. No local elas acenderam suas “tochas da liberdade”, representadas pelos cigarros Lucky Strike. Anos antes, também em Nova York, uma mulher havia sido presa por fumar diante de seu filho e outra por fumar dentro do automóvel.A British American Tobacco foi um truste constituído em 1902, após James Buchanan Duke reunir empresas norte-americanas e a britânica Imperial Tobacco Company. Em seguida, a BAT expandiu-se para vários outros países, principalmente ao adquirir firmas locais. Em 1914, ampliou seus negócios no Brasil e tornou-se acionista majoritária da Companhia Souza Cruz, fundada no Rio de Janeiro, em 1903, pelo português Albino Souza Cruz. Ao final da Segunda Guerra Mundial (1945), a BAT era a maior fabricante de cigarros no mundo.As indústrias de tabaco norte-americanas cresciam tão ou mais rapidamente que as de automóveis. Se no ano de 1915 haviam fabricado 25 bilhões de cigarros – no limite para atender às Forças Armadas – em 1943 a produção chegou a 225 bilhões de unidades. Durante a Segunda Guerra, o uso do tabaco difundiu-se pelo planeta. Na Grã-Bretanha, cigarros eram tidos como artigo de primeira necessidade nos tempos difíceis. Entre as mulheres britânicas, o aumento do consumo foi rápido, principalmente nas áreas atingidas pelos bombardeios nazistas. Mesmo na Alemanha, onde Adolf Hitler afirmava ser o tabaco a manifestação da ira do homem vermelho (índio) contra o homem branco, houve autorização para que cigarros fossem distribuídos aos soldados: cada um poderia receber seis cigarros por dia e uma cota extra de 50 unidades mensais poderia ser comprada, desde que taxada em 90% sobre o preço original. Durante o Natal, quando seus provimentos eram reduzidos, as referências a cigarros eram uma constante nas cartas enviadas para as famílias. Prisioneiros e guardas usavam o produto como moeda não oficial em diferentes locais e situações durante a guerra e estavam presentes em cenas marcantes do cinema, por exemplo, quando condenados à morte, pediam para fumar um cigarro como “último desejo”.Os combatentes eram extremamente sensíveis às diferenças entre as marcas. Britânicos gostavam dos cigarros Woodbines, Players e Gold Flake. Americanos preferiam Camels, Luckies e Chesterfields. Soldados nazistas consumiam seus Sturm Zigarreten (Cigarros da Tempestade). As tropas japonesas fumavam a marca Ko-ah (Paz Dourada), produzida na China invadida pelos nipônicos. No caso dos militares americanos, a associação entre o cigarro e a guerra foi tão profunda que alguns acampamentos de transição na França, ocupados pelas tropas dos Estados Unidos, eram lembrados pelos nomes das marcas: Campo Pall Mall, Campo Chesterfield, Campo Lucky Strike e Campo Philip Morris. Além das tropas, os maiores líderes dos Aliados faziam uso de algum derivado do tabaco: o general Douglas MacArthur e Josef Stalin fumavam cachimbo, Winston Churchill comemorou a vitória final com um charuto entre os dedos.Com exceção da Alemanha nazista, que fez suas próprias pesquisas e usou trabalhos de cientistas estrangeiros para tentar comprovar os danos causados pelo fumo, no período da guerra ninguém mencionou seus potenciais malefícios. Cessaram os combates, contabilizaram-se os milhões de mortos, mas o cigarro, esta sedutora invenção dos tempos modernos, continuou seu lento e silencioso extermínio.Marcio Andrade é coautor de Cerejeiras e cafezais: relações médico-científicas entre Brasil e Japão e a saga de Hideyo Noguchi (Bom texto, 2009) e autor da tese “Capítulos da história sanitária no Brasil: a atuação profissional de Souza Araújo entre os anos 1910 e 1920” (Fiocruz, 2011).Saiba mais:BOEIRA, Sérgio Luís. Atrás da cortina de fumaça. Tabaco, Tabagismo e Meio Ambiente: estratégias da Indústria e Dilemas da Crítica. Itajaí: Editora Univali, 2002.KLEIN, Richard. Cigarros são sublimes: uma história cultural de estilo e fumaça. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.JAQUES, Tiago Alves. “Dos usos e abusos do cigarro: um hábito que se tornou vício”. Anais eletrônicos da 1ª Jornada de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Rio de Janeiro, 2011.Filmes:O Informante (Michael Mann, 1999)Obrigado por fumar (Jason Reitman, 2006)Fumando Espero (Adriana Dutra, 2009)Internet:Aliança de Controle do Tabagismo + Saúde – http://actbr.org.br/institucional/Notícias e informações sobre o tabaco no mundo – http://archive.tobacco.org/
Entre o prazer e a morte
Marcio Andrade