- Ao mesmo tempo desejadas e temidas, as substâncias alteradoras da consciência representam um salto adiante ou um passo atrás para a condição humana? Quando o assunto é o consumo de drogas, sobretudo as proibidas, há duas alternativas que geralmente surgem: elas são “benignas” ou são “malignas”.Para a perspectiva “bendita”, usar psicoativos é explorar capacidades supostamente não desenvolvidas no “espaço interior” do ser humano. Já quem atribui às drogas uma “maldição” baseia-se em dois argumentos: o suposto risco individual de intoxicações e o perigo que representariam grupos desviantes, questionadores da moral vigente.Segundo o filósofo espanhol Antonio Escohotado, um dos mais importantes estudiosos das drogas no planeta, essa polarização define o embate entre duas concepções ideais de sociedade: uma que extinguiria as drogas (ilícitas) e outra em que estas seriam tratadas em um mercado aberto. Se o primeiro esquema é até hoje apoiado pelos aparatos legais e repressivos do Estado, o segundo jamais deixou de existir como forma de resistência e contestação constante, uma defesa prática da liberdade individual em face das investidas das políticas de controle social e corporal da chamada “guerra às drogas”. Sua principal referência foi a contracultura, movimento ocorrido a partir dos anos 1960.As políticas proibitivas emergiram apenas no início do século XX, enquanto o recurso à alteração de consciência tem raízes imemoriais na cultura humana. O resultado é que as tentativas de interdição e repressão ao consumo, comércio e produção de algumas drogas (enquanto a venda de outras, como álcool e medicamentos, é regulada e estimulada), em vez de extinguir estas substâncias – como era a meta da ONU e dos Estados Unidos – acabaram reordenando um lucrativo e (por consequência da repressão) violento mercado.Os índices de consumo de cocaína, por exemplo, eram baixos em escala mundial entre os anos 1920 e 1960. Segundo dados do órgão federal americano para narcóticos, em 1939 havia mais usuários dessa droga em Paris do que nos Estados Unidos. A cultura de uso de cocaína só teria se difundido em ampla escala depois das restrições ao comércio de anfetaminas, implementadas a partir do final dos anos 1960 e consolidadas internacionalmente em 1971. “Até meados dos anos 1960 ainda era fácil obter nas farmácias variantes tão ativas – ou mesmo muito mais – quanto os fármacos controlados”, atesta Antonio Escohotado.A evolução das pesquisas científicas também foi importante para a difusão do consumo de alteradores de consciência, sobretudo os chamados psicodélicos – termo cunhado pelo psiquiatra britânico Humphry Osmond, em carta ao escritor e amigo Aldous Huxley, unindo os termos gregos “ψυχ?” (psyche, mente) e “δ?λος”(delos, manifestando), ou seja, aquilo “que manifesta a mente”. A mescalina foi isolada de amostras do cacto peyote em 1897, sintetizada em laboratório em 1919, mas somente depois da descoberta do LSD (ácido lisérgico) pelo suíço Albert Hoffman, em 1943, essa cultura de alteração da consciência pelo uso de “alucinógenos” difundiu-se mundialmente, em especial a partir dos anos 1960.O contexto era de pós-guerra, marcado pelo fantasma de uma possível destruição nuclear iminente, pela racionalidade tecnocrata e pela polarização entre os governos estadunidense e soviético na disputa da hegemonia planetária – a Guerra Fria. A juventude despontava como um setor social específico, e as camadas médias urbanas mobilizaram-se em torno de um novo ideal, fortemente libertário – primeiro nos Estados Unidos, depois em diversas partes do planeta. A contracultura questionava valores tradicionais e a própria racionalidade que organizava modelos de mundo rejeitados pelos jovens de então.
A mudança passa a ser almejada não só nos planos político e econômico – como defendido pelos grupos de esquerda, principalmente em suas vertentes marxistas – mas também no âmbito das relações pessoais e da consciência individual. Surgem buscas por novos padrões de comportamento, modelos familiares e experiências religiosas e sexuais, contra a ideia do lar burguês e da sociedade de consumo. Aspectos “subterrâneos” e “marginais” das realidades urbanas passam a ser valorizados: a identificação não se dá imediatamente com o “povo” ou o “proletariado revolucionário”, mas com as ditas minorias – incluindo-se aí não só homossexuais, negros e mulheres, mas também os “loucos” e usuários de drogas.
A desconfiança tanto em relação aos ideais de esquerda quanto aos de direita abriria espaço para a construção de uma “Sociedade Alternativa”, como cantou Raul Seixas, que poderia ser atingida através da recusa dos valores e das práticas dominantes. “Se recuse a contentar-se com meras horas vagas para dar vazão à potencialidade mágica da sua personalidade; se torne surdo e cego às blandícias de coisas como carreira, prosperidade, mania do consumo, política de poder, progresso tecnológico; e, por fim, não tenha mais do que um sorriso triste para a baixa comédia desses valores, passando-lhes ao largo”, sintetizou Theodore Roszak, escritor estadunidense que ajudou a popularizar a expressão “contracultura”.Nesse cenário de contestação, resistência e busca por outras formas de viver e conviver, ganha importância o recurso à alteração de consciência por meio de alucinógenos e drogas em geral. Tornaram-se mundialmente famosas as palavras de ordem criadas pelo ativista psicodélico Timothy Leary (1920-1996): “Turn on, tune in, drop out”, algo como “Ligue-se, sintonize-se, caia fora”. Os integrantes da contracultura viam as drogas, sobretudo as psicodélicas, como instrumentos potencializadores – ou “combustíveis” – da transformação da natureza humana, possíveis aportes para o exercício da liberdade e da expansão do conhecimento interior, componentes supostamente fundamentais para a transformação radical da sociedade.Nos Estados Unidos e na Europa, os movimentos contraculturais atingiram em certos momentos um caráter massivo, de grande influência no debate político e com manifestações que levaram multidões às ruas. Na Holanda, o movimento Provo (uma abreviação de “provocadores”) reuniu milhares de jovens em eventos na praça Spui. Em São Francisco, nos Estados Unidos, o famoso happening “Human-be-In”, em 1967, contou com a presença de 30 mil pessoas e planejava fazer levitar o Pentágono com o poder da mente para resistir à Guerra do Vietnã. No ano seguinte, dezenas de milhares participaram da batalha campal que se seguiu a um ato pacifista em frente à Convenção do Partido Democrata, em Chicago. Sem falar no público do Festival de Woodstock, em 1969, estimado em mais de meio milhão de pessoas.Embora ainda hoje se faça sentir, a influência da contracultura não foi o bastante para garantir a hegemonia da visão “benigna” das drogas.Júlio Delmanto é autor da dissertação “Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil após 1961” (USP, 2013).Saiba Mais:ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. Madri: Espasa-Calpe, 1983.MAILER, Norman. Os exércitos da noite. Rio de Janeiro: Record. 1968.PEREIRA, Carlos Alberto. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1984.ROSZAK, Theodore. Para uma contracultura. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971.Sites:Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP): http://neip.infoColetivo Desentorpecendo a Razão: http://coletivodar.orgFilmes:Depois de maio (Olivier Assayas, 2012)Os sonhadores (Bernardo Bertolucci, 2003)Tropicália (Marcelo Machado, 2012)Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni, 1970)
Manifestar a mente
Júlio Delmanto