- “Uma guerra total contra o inimigo número um nos Estados Unidos: as drogas perigosas”. Foi assim que o então presidente Richard Nixon, em 1972, consagrou o termo pelo qual ficaria conhecida a política de combate às drogas ilegais: “war on drugs”, ou “guerra às drogas”.Nixon dizia-se preocupado com o número expressivo de ex-combatentes do Vietnã que retornavam adictos à heroína, e com o aumento do uso das drogas psicodélicas – como o LSD e a maconha – associadas à contracultura e sua contestação dos valores tradicionais americanos, centrados em crenças religiosas puritanas, consumismo, individualismo e militarismo.Era o início da reação da “América tradicional”, interessada em frear as experiências livres de jovens hippies, pacifistas, libertários, feministas, ativistas gays e negros que sacudiram os Estados Unidos nos anos 1960. É claro que as “drogas perigosas”, para Nixon, eram as ilícitas, e não as produzidas e vendidas pela indústria farmacêutica, receitadas por médicos e controladas pelo Estado. Mas selecionar algumas delas e classificá-las como “inimigo número um” não foi uma ideia original do presidente.Na passagem do século XIX para o XX, apareceram nos Estados Unidos muitas organizações civis dedicadas a combater o consumo de algumas drogas. Seu primeiro alvo foi o álcool. A partir dos anos 1910, a luta proibicionista voltou-se principalmente contra o ópio e seus derivados (os “opiáceos”), como a morfina e a heroína; mas também contra a maconha e a cocaína. Ao mesmo tempo, o antigo racismo e uma nova onda xenófoba contra imigrantes motivaram a associação entre certas drogas e populações específicas: negros seriam consumidores de cocaína, indígenas do cacto peyote, chineses de ópio, hispânicos de maconha, italianos e irlandeses de álcool.A primeira e mais completa legislação para o controle do uso de drogas psicoativas foi a Lei Seca de 1919, que tornou ilegal o consumo de álcool nos Estados Unidos. Do dia para a noite, milhões de pessoas viraram foras-da-lei. As prisões incharam, aumentaram os níveis de intoxicação com bebidas adulteradas, e o consumo não diminuiu, o que fortaleceu as máfias. A revogação da Lei Seca, em 1933, foi o atestado do seu fracasso, mas não aboliu sua lógica. Outras drogas, como a cocaína e a maconha, foram gradualmente proibidas nessa década por leis como a Marihuana Tax Act, de 1937. A “guerra” estava lançada, baseada em critérios morais e de defesa da saúde pública. Não era, portanto, uma cruzada contra substâncias inanimadas – as drogas – mas contra as pessoas que as produziam e consumiam.O início do século XX viu movimentos similares em outros países. Da China à França, do México à Argentina e ao Brasil, houve variações dessa fórmula. No Brasil, por exemplo, o uso de maconha era há muito tempo reprimido. O Rio de Janeiro foi a primeira cidade no mundo a editar uma lei contra o uso da maconha – o pito de pango – em 1830, por associá-lo aos negros capoeiras que amedrontavam a sociedade escravocrata da capital imperial. Nas décadas de 1920 e 1930, uma série de drogas, como a heroína e a cocaína, já haviam sido condenadas em tratados internacionais e proibidas na maioria dos países. Em cada sociedade seria possível encontrar versões da combinação entre racismo, xenofobia, moralismo, preconceito social e religioso associados ao uso de drogas.A famosa declaração de Richard Nixon transformou a guerra interna contra traficantes e usuários em guerra internacional. A “guerra às drogas” foi fundamentada na premissa imprecisa de que o mundo se dividiria em países produtores e países consumidores de drogas ilegais. Os Estados Unidos declararam-se na segunda situação (omitindo o fato de serem produtores de maconha e drogas sintéticas) e decidiram defender-se das remessas de drogas vindas de países da Ásia e da América Latina. Para isso, passaram a financiar a ação das forças militares dos países “produtores” no combate ao narcotráfico – em especial na América Latina, treinando tropas do México aos Andes com o objetivo de caçar traficantes e destruir cultivos ilícitos.O governo de Ronald Reagan (1981-1989) reforçou essa linha, identificando o narcotráfico como ameaça à segurança nacional. Seu governo classificou as “narcoguerrilhas” e os “cartéis” colombianos como grupos terroristas, autorizando cada vez maiores repasses de verba e material militar para países como Colômbia, Peru e Bolívia. Com o fim da Guerra Fria, em princípios dos anos 1990, o discurso diplomático-militar estadunidense oficializou a “guerra às drogas” como questão geopolítica central: por todo o continente o “inimigo interno” foi deixando de ser o comunista para ser o traficante.Por conta dessa articulação entre segurança nacional e segurança pública, a polícia e as Forças Armadas tiveram suas funções aproximadas – resultando na “policialização das forças armadas” e na “militarização das polícias”. Do altiplano andino às cidades fronteiriças mexicanas e às favelas brasileiras, militares passaram a ser chamados para enfrentar grupos narcotraficantes. A desestruturação dos “cartéis” de Medellín (com o assassinato de Pablo Escobar, em 1993) e de Cali (em meados dos anos 1990), na Colômbia, não minou o narcotráfico no continente, mas deu espaço para que grupos mexicanos crescessem.No século XXI, a militarização da “guerra às drogas” foi aprofundada, seguindo os deslocamentos do negócio do tráfico. Alguns exemplos são a elaboração, por impulso do governo Clinton, do Plano Colômbia (entre 2000 e 2008), da Iniciativa Mérida, no México (desde 2006), acordada entre o governo de George W. Bush e Felipe Calderón, e o aumento da participação de militares brasileiros em ações antidrogas, como a “Força de Pacificação” nos Complexos da Penha e do Alemão (de 2010 a 2012) e na favela da Maré (desde 2014), no Rio, e nas Operações Ágata em áreas de fronteira. Junto a eles, polícias militarizadas, com seus batalhões especiais, tornam cada vez mais difícil identificar quem é polícia e quem é militar.Ao fim de um século de ilegalidade e quase cinco décadas de “guerra às drogas”, o consumo dessas substâncias continua inabalado. Em vez de se intimidar, o mercado ilegal cresce, com imensa lucratividade. Recente estimativa feita pelo jornalista italiano Roberto Saviano destaca que o melhor negócio do capitalismo contemporâneo é o tráfico de cocaína, que renderia por ano cem vezes mais que as ações da Apple, gigante da tecnologia. São bilhões de dólares movimentando tanto a economia ilegal quanto a legal – incluindo as indústrias de armas e de segurança, a de compostos químicos e setores que se envolvem na lavagem do dinheiro, como o sistema bancário e o imobiliário. Em outro extremo, o combate a grupos narcotraficantes aciona potentes táticas de controle das populações, justificando a repressão seletiva contra jovens, pobres, negros, indígenas, camponeses, favelados, imigrantes. A estigmatização como “traficante” tem autorizado que se mate, torture, persiga. A “guerra às drogas” não inventa o racismo e a xenofobia, mas é um meio para exercitá-los com energia.O “fracasso” da “guerra” em atingir a meta proibicionista tem instigado muitas propostas alternativas. Antigos presidentes afinados com ela agora reconhecem a necessidade de mudar. Novos estudos médicos indicam as potencialidades da maconha, e a descriminalização do uso de todas as drogas ilícitas em Portugal, em 2002, torna-se caso amplamente estudado. Nos Estados Unidos, a legalização do uso recreativo da maconha nos estados americanos do Colorado e de Washington acende novo debate, assim como a inicial experiência de regulamentação estatal da maconha no Uruguai.O abrandamento da legislação no caso da maconha sinaliza caminhos possíveis para longe da repressão, mas por si só não abala a lógica da war on drugs. Para 2015, o presidente Barack Obama requereu 25 milhões de dólares para políticas relacionadas a drogas – sendo 43% para prevenção do uso e tratamento e 57% para a repressão doméstica e internacional. A “guerra às drogas” continua associada à ilegalidade que inaugurou, há cem anos, o potente negócio que a repressão visa acabar. É um jogo circular e violento que tem finalidades políticas, econômicas e geopolíticas, mas não lida efetivamente com as pessoas e suas experiências com drogas, sempre singulares e intransferíveis.Thiago Rodrigues é professor do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador no Nu-Sol/PUC-SP e autor de Narcotráfico: uma guerra na guerra (Desatino, 2012).Saiba Mais:LABROUSSE, Alain. Geopolítica das drogas. São Paulo: Destino, 2010.RODRÍGUEZ, Andréa. Labirintos do tráfico: vidas, práticas e intervenções. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.SAVIANO, Roberto. Zero, Zero, Zero. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.Sites:Drug War Facts - www.drugwarfacts.orgNúcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) - www.neip.infoFilmes:Cortina de Fumaça (Documentário de Rodrigo McNiven, 2010).Notícias de uma guerra particular (Documentário de João Moreira Sales e Kátia Lund, 1999).
Quem é o inimigo?
Thiago Rodrigues