Uso se branco, abuso se preto

Lucas Avelar

  • A aguardente foi a principal droga em circulação e ingestão na América Portuguesa durante todo o período colonial. Usada como moeda de troca no sertão americano e pelos traficantes de escravos no litoral africano, o álcool se espalhou nos dois lados do Atlântico Sul. O tabaco produzido na Bahia e em Pernambuco também entrou nas transações do tráfico negreiro. Juntos, aguardente e tabaco serviram para adquirir 48% dos escravos que chegaram vivos à América Portuguesa entre 1701 e 1810. 
     
    Essas drogas estavam presentes em diferentes ocasiões do cotidiano dos escravos, como festas, batizados, casamentos. No engenho, em dias de calor, a aguardente, servida pelo senhor, era misturada com água, açúcar e limão ou laranja. Os senhores ofertavam, os padres condenavam, os vinhos portugueses perdiam espaço.
     
    Tais substâncias estimulavam a ereção da “civilização do açúcar”. Mesmo no auge da extração de minérios, o lucro da produção agrícola sempre foi maior que o do garimpo. Aguardente e tabaco para a África, açúcar para a Europa: entre os séculos XVI e XIX, a economia e a sociedade colonial funcionavam graças a estas drogas. Incluindo inúmeras outras. Na época, a palavra “droga”, segundo o dicionário de Antônio de Moraes Silva, de 1813, designava qualquer conjunto de “riquezas exóticas, produtos de luxo destinados ao consumo, ao uso médico e também como ‘adubo’ da alimentação”. A definição abarcava, portanto, uma infinidade de plantas, vegetais, tintas, óleos, raízes e mercadorias de lã ou seda. E devido à baixa circulação de moedas metálicas, as “drogas” cumpriam também o papel de facilitar as trocas no território luso-americano. 

    Entre os africanos da Bahia, a aguardente era trocada por feijões, aipins e batatas. No Pará, os indígenas que trabalhavam no plantio do gengibre recebiam pagamento com cacau que, assim como o cravo e a salsa, era moeda corrente na Amazônia. Misturado com aguardente, o gengibre era usado “para mezinhas de dores frias, e cólicas”. Matéria-prima do chocolate, o cacau competiu com o café e o chá nos mercados de produtos de luxo na Europa durante os séculos XVII e XVIII.

    Litogravura de 1822 apresenta o “mercado de escravos” no Rio de Janeiro. Como mostra a cena, o tabaco e o “pito do pango” (maconha) eram drogas presentes no cotidiano dos escravos. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)

    O cultivo do algodão, que já era conhecido pelos indígenas antes da chegada dos portugueses, desenvolveu-se na capitania de Itamaracá. A Coroa também incentivou sua produção na capitania do Maranhãopara que a Fazenda Real e os moradores aumentassem suas rendas. O algodão maranhense era usado como vestuário, gênero comercializável e moeda. Os portugueses tinham a expectativa de transformar a Amazônia numa fonte fornecedora de especiarias que substituísse a Índia tomada pelos holandeses.

    As drogas tinham também sua importância para a saúde da população. Distantes das boticas europeias, vulneráveis às moléstias tropicais e pouco familiarizados com as plantas medicinais da flora brasileira, os colonos tinham de se submeter aos ensinamentos naturais, procurando combiná-los com as vagas noções terapêuticas que traziam da metrópole. As fórmulas milenares que conheciam nem sempre eram suficientes para combater os males causados por bichos e plantas típicos da mata tropical. Dentre os gêneros medicinais do Brasil divulgados na Europa, destacavam-se aqueles dotados de propriedades contravenenosas, como a “raiz de mil homens”: misturada ao vinho ou à aguardente, era recomendada também para dores de barriga. A mordida por cobras era tratada com raiz-preta, igualmente imersa nas bebidas alcoólicas.

    Método de destilação da aguardente, publicado no livro de João Manso Pereira, Memória Sobre a Reforma dos Alambiques, de 1797. (Imagem: Reprodução)Se serviam para curar, as drogas também colaboravam para a reprodução da sociedade colonial. A Igreja exigia virilidade do homem para que ele, após o matrimônio, realizasse a função reservada ao marido pela Bíblia: gerar prole. Para estimular a “elasticidade” masculina, Guilherme Piso (1611-1678), naturalista holandês que escreveu sobre o Brasil no século XVII, registrou algumas plantas afrodisíacas, como a pacoba, a banana e o amendoim. Por outro lado, como os padres também controlavam os excessos sexuais, contavam com uma lista de plantas antieróticas classificadas nos herbários, que incluía sementes de alface, melancia e melão, a maior parte extraída do conhecimento dos povos indígenas.

    Cultivada pelos africanos nos períodos em que a cana-de-açúcar crescia, a maconha era consumida por eles em rituais religiosos e como forma de “resistência não violenta”: a absorção do “fumo-de-Angola”, como era chamada, contribuía para estabilizar a tensão latente entre senhores e escravos.

    A legislação colonial que versava sobre todas essas substâncias era mais rigorosa justamente contra a mais popular delas. Em meados do século XVII, a Coroa portuguesa editou leis proibindo a produção e a venda de cachaça. O objetivo era evitar a concorrência com o vinho português no tráfico negreiro. O mercado ilegal logo tratou de driblar a restrição. No final do século, porém, os portugueses sucumbiram à pressão dos traficantes fluminenses e legalizaram a venda da bebida, passando a taxar o comércio antes clandestino (ver RHBN n. 99, p. 20). Ao longo do século XVIII, a Coroa portuguesahesitou em permitir o consumo de aguardente no interior da colônia devido ao medo de que propiciasse momentos de troca de ideias e informações entre os africanos. De sua parte, os senhores percebiam que a bebida servia como estimulante para trabalhos mais árduos na mineração.

    No início do século XIX, discutia-se a proibição da embriaguez pública no Rio de Janeiro. “Se forem a prender, prende-se metade da sociedade”, argumentou o visconde de Cairu, em 1827, contra a proposta de prisão de pessoas flagradas embriagadas. Seu interlocutor, o marquês de Caravelas, defendia o encarceramento provisório para proteger o ébrio de acidentes como atropelamento ou pisada de cavalo.Três anos depois, ficou estabelecido por lei que o beberrão fosse recolhido à cadeia até que passassem os efeitos do álcool. Há vários registros de prisão de escravos por embriaguez nas décadas de 1820, 1830 e 1840. As elites pretendiam transformar a capital do Império num lugar em que os transeuntes se comportassem de acordo com um modo de viver “civilizado”, como o das grandes cidades europeias – até porque franceses, ingleses e outros estrangeiros chegavam para viver no Rio.

    A publicação do Código de Posturas, em 1830, fez parte desse processo. Ele trazia recomendações acerca da limpeza de ruas, da regulamentação de estabelecimentos comerciais, de modos de se trajar e se comportar em lugares como praças e teatros. O parágrafo 7º, que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários, estabelecia: “São proibidos a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia”. “Pito do pango” era o cigarro de maconha.

    No intervalo entre os anos de 1811 e 1830, ocorreu o maior desembarque de escravos nos portos brasileiros ao longo dos mais de três séculos de tráfico negreiro: dos quase 800 mil, grande parte desceu no Rio de Janeiro. A proclamação da Independência (1822) ocorreu em meio a esse aumento da chegada de africanos, e os escravos apoiaram a libertação de Portugal, acreditando que sua libertação dos senhores também entraria no jogo. A repressão lhes tolheu os movimentos: proibir a embriaguez e o “pito do pango” foram expedientes usados para aprisionar escravos que circulavam nas ruas por essa época.

    Um novo Código de Posturas, em 1854, estabeleceu que a prisão dos “escravos e mais pessoas” que usassem o pito do pango aumentaria para oito dias, sanção mantida no código de 1894. Sob a República, ao longo do século XX, não diminuiria a repressão ao consumo das plantas, bebidas e fumaças, no Brasil e no mundo. Pelo contrário: ela atingiu o status de “guerra”. Há muito tempo, a proibição é forma de recusar o reconhecimento dos direitos individuais. No Brasil, ela provoca a segregação que nega direitos sociais aos não brancos.

    Lucas Avelar é professor da Universidade Estadual de Roraima e autor da dissertação “A moderação em excesso: estudo sobre a história das bebidas na sociedade colonial”(USP, 2010).

    Saiba mais: 
     
    LIMA, Alam José da Silva. “Do 'dinheiro da terra' ao 'bom dinheiro': moeda natural e moeda metálica na Amazônia colonial (1706-1750)”. Dissertação de Mestrado em História (UFPA, 2006).
    RIBEIRO, Marcia Moisés. A ciência nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2007.
    VENÂNCIO, Renato Pinto & CARNEIRO, Henrique (orgs.). Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda, 2005.
     
    Filme: 
     
    Cortina de Fumaça (Rodrigo Mac Niven, 2010)
     
    Site:
     
    Alcohol and drugs history society – http://alcoholanddrugshistorysociety.org/