Organizar, ordenar, disciplinar, controlar, normatizar. No Brasil, como em vários outros países da América Latina, os processos que culminaram com a independência resultaram também na necessidade de expandir a escolarização para parcelas da população mais pobre, até então alijadas da instituição escolar.
Os discursos dos estadistas nas primeiras décadas do período imperial enfatizavam a ligação entre civilização, progresso da nação e avanço da instrução. A escola começava a ser pensada como agente ordenador da população, indispensável na constituição da nacionalidade: “Os conhecimentos que aí se adquirem são indispensáveis não só para tratar dos negócios domésticos, mas ainda para bem desempenhar todos os deveres do cidadão. Fora uma tirania que o Estado impusesse aos seus membros obrigações, sem lhes dar ao mesmo tempo meios de as bem conhecer e cumprir”, afirmava relatório do presidente da província do Rio, em 1835.A elite dirigente responsável pela construção do Estado Nacional acreditava no progresso da sociedade e na importância de civilizar o povo. A educação seria um alicerce para esse caminho. Uma das tarefas primordiais era organizar a instrução pública elementar, que deveria se estender a um número cada vez maior de pessoas.A educação deveria ser expandida para todas as classes. Ela teria a capacidade de dissipar as trevas, difundir a ordem, estabelecer o primado da razão e aperfeiçoar o país, colocando o Brasil ao lado das “nações civilizadas”. Se a falta de instrução era uma das causas da desgraça da nação, um obstáculo para o que se acreditava ser a marcha inexorável do progresso, o remédio era expandi-la, fazendo com que chegasse a todos os lugares.A instrução a ser “derramada” era a elementar – ou seja, os rudimentos do ler, escrever e contar. E “todas as classes” significava a população livre, ficando excluída desse horizonte, pelo menos do ponto de vista legal, a população escrava. A tarefa não era pequena, nem mesmo consensual entre as elites. Em termos práticos, expandir a escolarização significava criar mais escolas, habilitar professores, estabelecer conteúdos curriculares e um método de ensino eficaz, definir condições de acesso, número de vagas, material escolar e um sistema de fiscalização, entre outras coisas.Logo depois da independência, a afirmação do Estado e a construção da nação estavam intimamente relacionadas à capacidade de fazer valer, no Império brasileiro, o império da lei. Na perspectiva iluminista abraçada por intelectuais e políticos, esta questão estava condicionada à instrução. No Legislativo, na imprensa e em diversas outras instâncias sociais discutia-se a necessidade de educar e instruir o povo para garantir a ordem.Os veículos de comunicação foram uma das principais estratégias utilizadas pelos intelectuais para difundir seus discursos civilizatórios e legalistas. O mineiro Bernardo Vasconcelos, um dos mais influentes políticos brasileiros daquele momento, defendia a liberdade de imprensa por considerá-la o instrumento mais propício para disseminar conhecimentos úteis entre os membros da sociedade.Em Minas, até então a província de maior população do Império, o jornal O Universal (1825-1842) foi o principal divulgador desse ideário. Na edição de 18 de julho de 1825, fez um diagnóstico a respeito da educação brasileira: “O sistema de educação elementar, que se tem seguido no Brasil, desde o seu descobrimento, tem sido mui dispendioso, e mui delimitado; ainda sem notar outros defeitos, que de tempos a tempos se tem conhecido, e se tem tentado remediar com algumas providências oportunas”. Animados que estavam com a recém-conquistada independência, seus editores defendiam que “se a cultura do espírito aumenta a felicidade dos homens, não pode deixar de ser grande serviço à humanidade inventar meios pelos quais essa cultura se generalize”. No entanto, apenas estabelecida a necessidade, impunha-se o lugar das classes inferiores na sociedade, com a ressalva de que “não queremos dizer que todos os homens devam ou possam ser médicos, matemáticos, jurisconsultos”. E acrescentava o jornal: “Por este princípio se não deve ocupar a mocidade de um homem, destinado pelas circunstâncias a um ofício mecânico, no estudo das ciências abstratas, que não têm relação com o trabalho manual, em que tal indivíduo se deve empregar. Mas há certos ramos de instrução que são compatíveis com todos os empregos no que se distingue o homem da criação bruta; e no que se interessa tanto a felicidade dos indivíduos em particular, como a do Estado em geral”.
O caráter autoritário e excludente da nação que se queria construir acabava por deixar claros os limites da inclusão. Ela seria positiva desde que não colocasse em risco as relações tradicionais de submissão da maioria à exploração da elite imperial. Vinha daí a defesa de que os estudos não poderiam comprometer o tempo do trabalho, ou de que a escola deveria instruir nas artes mecânicas. Na prática, a proposta de educação iluminista defendida por muitos era uma falácia.Para reforçar a necessidade da instrução elementar do povo, seus defensores buscavam o exemplo em outros países onde, como no Brasil, ela não existia: “Em tais países, o Governo não tem outro meio de manter a ordem pública se não o rigor dos castigos, ou as imposturas de alguma superstição, cujos mistérios são conhecidos unicamente dos poucos que governam, os quais com o andar dos tempos vêm ficar tão sujeitos aos erros dessas superstições como os povos para cuja ilusão elas haviam sido inventadas”. A referência a outros nações, estratégia tão comum no Brasil e em outros países da América Latina, tem aqui um caráter pedagógico e de persuasão. Não é retórica vazia: pretende demonstrar o sentido do processo civilizatório vivido pelas sociedades humanas.Na segunda metade do século XIX, a questão da educação das novas gerações, sobretudo a escolar, continuava mobilizando políticos e intelectuais brasileiros – e crescentemente também as famílias, mesmo aquelas dos segmentos mais pobres da população. As diretrizes, de modo geral, permaneciam as mesmas. A necessidade de se expandir a escola pública estatal para a construção da nação e para o fortalecimento do Estado Nacional é uma estratégia que praticamente unifica os discursos e as ações de monarquistas e republicanos.As diferenças eram pequenas. Os monarquistas exaltavam as iniciativas do Império e das províncias e tendiam a imputar as mazelas da instrução pública a dificuldades apresentadas pelo meio social e cultural (pobreza, miscigenação, pouco interesse dos pais etc.), ao desinteresse da classe política pelo problema, ou mesmo à extensão territorial do país. Já os republicanos usavam a baixa escolarização da população como um dos principais argumentos para mostrar o quanto a monarquia era avessa aos interesses populares: somente a República poderia construir um Estado Nacional forte, pois erigido de acordo com os interesses do povo, e uma nação moderna, pois baseada na adesão consciente e ilustrada dos cidadãos.Uma vez proclamada, a República continuou com os mesmos padrões imperiais de investimento na educação popular. Em alguns aspectos houve até mesmo recuo, como na gratuidade da escola pública – presente na Constituição de 1824, mas não na primeira Constituição republicana, de 1891.A tensão quanto ao lugar da educação na construção de uma nação independente e soberana atravessaria todo o século XX e chegaria praticamente intacta aos dias de hoje. A despeito da importância quase unânime que os discursos políticos continuam a lhe conferir.Luciano Mendes de Faria Filho é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de Educação Pública, a invenção do presente (Mazza Edições, 2012).Carla Simone Chamon é professora do Cefet-MG e autora de Escolas em reforma, saberes em trânsito: a trajetória de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (Autêntica, 2008).Marcilaine Soares Inácio é professora da Universidade Federal de Minas Gerais e organizadora de Políticos, literatos, professoras, intelectuais: o debate público sobre educação em Minas Gerais (Mazza Edições, 2009).Saiba MaisBASTOS, Maria Helena Câmara & FARIA FILHO, Luciano Mendes de (orgs.). A escola elementar no século XIX: o método monitorial/ mútuo. Passo Fundo: Ediupf, 1999.CURY, Carlos Roberto J. Educação e Direito à Educação no Brasil: um histórico pelas Constituições. Coleção Pensar a Educação Pensar o Brasil Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014.MATTOS, Ilmar R. O Tempo Saquarema. A formação do estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990.
Instruir sem incluir
Luciano Mendes de Faria Filho, Carla Simone Chamon e Marcilaine Soares Inácio