Hierarquia, disciplina, rigidez, luta. Nas instituições militares de ensino em geral, e também nas escolas militares brasileiras, alguns métodos são utilizados para moldar não apenas a razão, mas a sensibilidade mais profunda do indivíduo. O objetivo é prepará-lo para aceitar o seu destino: enfrentar a morte no conflito armado.
Os alunos são submetidos a um imaginário específico, uma espécie de “pedagogia do guerreiro”, que funciona somente em espaços educativos militares relativamente isolados, em regime de internato. Nessas condições, os estudantes se veem imersos em um processo educativo intenso, permeado por um conjunto complexo de imagens visuais e verbais. Cria-se ali um universo que influenciará professores e alunos, conferindo um novo sentido à vida pessoal e profissional do soldado.Na “pedagogia do guerreiro”, adotada também em espaços educativos da polícia militar e dos bombeiros, o arquétipo do herói ocupa lugar de destaque. Encontrado nos mitos e nas lendas da maioria das culturas, caracteriza-se por valores como força, destreza, destemor, responsabilidade e cumprimento de missão. O herói está associado também à narrativa dos percalços que o indivíduo tem que enfrentar para atingir a maturidade, conquistar honra pessoal e aceitação pela coletividade. Tudo isso só pode ser obtido por meio do extremo sacrifício pessoal, em ações públicas de demonstração de força e coragem.Os heróis que servem de referência para a educação militar são buscados na história da própria instituição: patronos das armas e do Exército brasileiro, como o Duque de Caxias e o Marechal Rondon, encarnam em suas trajetórias pessoais os valores almejados. As narrativas desse panteão de homens ilustres servem como iniciação à vida militar nas escolas, e sua celebração ocorre pela transmissão oral e escrita de feitos exemplares. As vidas idealizadas dos patronos se enlaçam a uma narrativa maior, a da gênese do Exército brasileiro, e ambas estão presentes no relato histórico da formação da nação e de seus mitos fundadores. São discursos que buscam conferir legitimidade às instituições militares por meio do recurso à tradição constituída através do tempo. Por vezes, tal celebração acontece em rituais cívicos dirigidos ao mundo civil, como a comemoração da Independência no dia 7 de setembro. Tais estratégias têm por objetivo perpetuar nos educandos a memória de feitos notáveis, que ultrapassam os limites restritos da vida humana e atingem a eternidade – conferindo sentido ao universo material e simbólico da profissão militar.A imagem do herói se concretiza também em objetos de usos específicos – como a espada – em rituais marcantes da vida militar – como as formaturas de conclusão de curso dos oficiais, manejadas segundo um protocolo complexo que demanda meses de ensaio sistemático. A espada serve ainda para se fazer o juramento à bandeira, além de ser símbolo da conquista da condição de oficial.A formação dos soldados se completa em uma trajetória de privações e provações, expressa através da metáfora da escalada, que representa, na linguagem própria dos sonhos e dos mitos, um itinerário de aperfeiçoamento espiritual. É uma espécie de corrida de obstáculos, na qual o aluno realiza uma ascese, tendo que provar que está à altura da condição de “guerreiro”. Nas escolas militares, os alunos podem passar fome, sede e situações de adversidade, realizando o chamado adestramento de Ordem Unida.A semana de adaptação é outro exemplo desse processo: nos primeiros dias de curso em escolas militares, o aluno abandona as roupas civis e se integra a um cotidiano extremamente árduo de disciplina militar, durante um período que extrapola os horários habituais de descanso e de encerramento de atividades escolares. A semana de adaptação é coroada com a passagem pelos portões, quando o indivíduo encena o rompimento com a vida civil, num marco da aquisição de uma identidade propriamente militar.Embora a pedagogia do guerreiro seja milenar, ela sofre adaptações. A própria forma atual de fazer a guerra – difundida a partir de 1989, com o fim da Guerra Fria — exige maior integração dos militares na sociedade. As Missões de Paz, as operações de combate ao narcotráfico, as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) demandam que os militares estabeleçam relações de cooperação com as chamadas forças auxiliares – polícia e bombeiros – com a Defesa Civil, com governos civis, com a imprensa.A finalidade da pedagogia do guerreiro não é gerar uma discussão crítica sobre a complexidade e as contradições da história. Os jovens não podem ser formados enquanto militares se são enfatizadas as hesitações e as fraquezas dos personagens e das instituições militares. É preciso lembrar que a pedagogia do guerreiro é um modelo educativo que prepara as pessoas para morrerem em prol de valores coletivos. Isto exige um nível considerável de convicção no sentido existencial da missão, que só pode ser internalizada através da pedagogia do exemplo.Mas para se adaptar melhor à sociedade contemporânea, marcada pela Ciência e pelo Estado Democrático de Direito, a narrativa dos heróis poderia incorporar esclarecimentos sobre vários aspectos da história da instituição militar. Caberia, por exemplo, abordar a biografia de homens e mulheres notáveis do Exército, trazendo as contribuições da história social e cultural do país, explicando a sua forma de sensibilidade e os seus valores, mostrando as relações estabelecidas entre o Exército e a sociedade brasileira e a dinâmica de suas transformações internas em razão de fatores políticos e econômicos.Suzana Marly da Costa Magalhães é militar e professora do Sistema de Ensino do Exército Brasileiro.Saiba MaisCAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.CASTRO, C. O espírito militar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.JUNG, C. O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.WERNER, J. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.WUNENBURGER, J.J. & ARAÚJO, A.F. Educação e imaginário: introdução a uma filosofia do imaginário educacional. São Paulo: Cortez, 2006.
Pedagogia do guerreiro
Suzana Marly da Costa Magalhães