Como é possível que um escravo ferreiro e um liberto oleiro tenham sido considerados homens poderosos em pleno século XIX? Até pouco tempo atrás, os estudos continuavam a desconsiderar o papel da experiência escrava na reorganização da vida cultural e material sob o cativeiro, enquanto outros – em igual medida – somente bradaram sobre heróis em narrativas que muitas vezes soavam a-históricas. Ainda sobrava pouco espaço para os africanos e seus descendentes na sociedade brasileira da época. Entre as imagens de cordialidade e de violência e as análises quantitativas, as histórias sobre a escravidão no Brasil continuaram a desconhecer a atuação destes personagens. Mas as trajetórias do escravo Manoel Congo e do liberto Felipe Santiago na Região Sudeste ajudam a revelar lógicas de poder, adaptações culturais e relações de parentesco no interior das senzalas, comprovando a importância da atuação dos escravos, africanos, libertos e crioulos na construção da nossa História.
O africano Manoel liderou uma insurreição quilombola no Vale do Paraíba em 1838. Escravo do capitão-mor Manoel Francisco Xavier, acabou capturado, julgado, condenado à morte e executado dois anos depois. Não se sabe ao certo quando ele desembarcou no Rio de Janeiro; talvez tenha sido no final da década de 1820. Batizado numa das freguesias urbanas da Corte imperial, foi rapidamente levado para a região cafeeira fluminense. Na nova terra, Manoel – um Bacongo, da África centro-ocidental – reuniu-se com africanos de várias origens e também a cativos crioulos (nascidos no Brasil), alguns indígenas e seus filhos miscigenados.
Instalado na Fazenda Maravilha, de Manoel Francisco Xavier, passou a exercer o ofício de ferreiro, juntando os conhecimentos que trazia da África com o que aprendera no Brasil. Em pouco tempo ganhou prestígio entre os escravos da região. Trabalhando com o ferro, podia consertar e fabricar lanças, facas e flechas sem levantar maiores suspeitas de senhores e autoridades locais.
Mas sua liderança também podia estar relacionada a elementos culturais. Alguns cativos eram reconhecidos como líderes porque detinham poderes espirituais fundamentais na formação das comunidades de senzalas e na organização de levantes. Manoel Congo era chamado de “pai” por outros africanos, inclusive pelos mais velhos, que tinham chegado a Vassouras décadas antes dele.
Essa influência talvez significasse o reconhecimento de alguma função religiosa. Nas línguas Kimbundu e Umbundu da África Central, a palavra tata/tate significava pai/meu pai. Em Vassouras, no ano de 1847 – portanto, quase uma década depois da insurreição de Manuel Congo –, foi descoberto um plano de revolta escrava, e seus líderes eram chamados de Tates Corongos. E ainda contavam com uma “sociedade secreta” dirigida por um “patrono negro”, o Kebanda, que tinha poderes espirituais.
Quase sempre acusados de feiticeiros, esses líderes realizavam rituais para os recém-nascidos, curas, diagnósticos para enfermidades, cuidavam dos mortos e ainda preparavam os feitiços para proteção contra mordidas de cobra, ataques de animais, acidentes de trabalho, inveja de companheiros ou a ira de feitores e senhores. Entre tantos poderes, ainda conseguiam planejar revoltas. Foi isso que aconteceu em 1882, em Campinas, oeste paulista.
Armados de paus, enxadas, facas e garruchas, os oitenta escravos da Fazenda Castelo se entrincheiraram na senzala, e aos gritos de “Mata Branco” e “Viva a Abolição”, resistiram ao ataque de um bando de homens armados. À frente dos revoltosos vinha Felipe Santiago, crioulo liberto que fora vendido no Maranhão para trabalhar nas fazendas de café paulistas. Filho de Guilhermina Mina, que deve ter chegado a São Luís entre 1780 e 1820, foi criado num ambiente no qual conviviam muitos grupos étnicos africanos, como Balantas, Mandingas, Papéis, Suruás e Nalus, das regiões da Senegâmbia e da Alta Guiné, majoritários entre os escravos do Maranhão.
Nos tempos de escravidão em São Paulo, Santiago conviveu com africanos de outras procedências e acabou se tornando feitor e oleiro. Em 1880, já homem maduro e experiente, juntou dois contos e 200 mil-réis e comprou sua carta de alforria. Casou-se e virou proprietário de um sítio. Mesmo em liberdade, continuou perto dos antigos companheiros e ainda mergulhou na organização de uma grande revolta escrava. Sua fama vinha de suas curas. Feiticeiro, conselheiro dos escravos e autoridade espiritual, fundou a Arasia, organização religiosa que exigia fidelidade, segredo e contribuições monetárias dos seus adeptos, todos escravos. Como retribuição, ele garantia aos participantes poderes extraordinários, como o de ficar invisível aos olhos dos brancos e as balas não atingirem seus corpos. E os cativos, seus fiéis seguidores, acreditavam.
Com seus rituais, poderes, apetrechos de ferraria, patuás e santos de origens tão diversas, esses líderes mostravam que estavam em curso poderosos processos de adaptação das diversas culturas africanas às condições do Brasil – processos estes chamados de “crioulização” – que também produziam lógicas próprias e poderes no interior das senzalas. E esse volumoso conjunto de saberes alcançou tanto casebres quanto casas-grandes, gabinetes e redações de jornais, provocando temores, ironias e perplexidade na “boa sociedade”.
Maria Helena P. T. Machado é professora da USP e autora de O Plano e o Pânico. Os Movimentos Sociais na Década da Abolição. Rio de Janeiro: UFRJ; São Paulo: Edusp, 1994.
Flávio Gomes é professor da UFRJ e co-autor de O Labirinto das Nações. Africanos e Identidades no Rio de Janeiro (Arquivo Nacional, 2006).
Saiba Mais - Bibliografia
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil. A história do levante dos malês em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SLENES, Robert W. Da senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Outros poderes
Maria Helena P. T. Machado e Flávio Gomes