Senhora de si

Juliana Barreto Farias

  • A travessia do Atlântico durava mais de dois meses. Espremidos nos porões dos navios negreiros, milhares de homens, mulheres e crianças suportavam calor, sede, fome, sujeira, ataques de ratos e piolhos, surtos de sarampo ou escorbuto. Muitos não resistiam, e acabavam jogados ao mar. Mas nem mesmo tantos maus-tratos impediam o nascimento de novas vidas. Em princípios do século XIX, uma jovem africana que estava vindo para o Rio de Janeiro deu à luz em plena viagem. Foi seu filho, Manoel José da Conceição Coimbra, quem lembrou essa história muitos anos depois.

    Para provar que a africana, batizada no Rio com o nome de Rita Maria da Conceição, era mesmo sua mãe, ele juntou fios de histórias que ainda guardava na memória a alguns registros escritos, como certidões de batismo, casamento e óbito. O relato – anexado ao processo que abriu em 1846, para garantir a herança materna, na Vara Cível do Rio de Janeiro – podia até parecer seco e muitas vezes impreciso. Ainda assim, reconstituía, como poucos, parte de suas experiências naquele “infame comércio” de africanos.

    Rita saíra de Cabinda, no Centro-Oeste da África, ao norte do Rio Zaire. Boa parte dos negreiros que chegavam ao Rio de Janeiro vinha dessa região. Ao cruzarem o oceano, eles deixavam para trás pátria, família, casa e deuses; tinham que encarar uma nova vida numa terra desconhecida. Mas já nos “tumbeiros” (como também eram chamadas essas embarcações), começavam a formar novos laços.

    A jovem africana e seu filho recém-nascido conseguiram aportar na capital do Império brasileiro. Segundo Manoel José, “chegando a esta cidade o navio em que vinham”, foram vendidos “no Valongo a Miguel José Taveira, que fez batizar a ambos por seus escravos”. Acomodados num dos armazéns que se espalhavam pela Rua do Valongo, maior entreposto de comércio escravista do país, devem ter ficado por algum tempo expostos à curiosidade dos possíveis compradores. Arrematados por um senhor português, logo receberam nomes cristãos na igreja da freguesia de Santana: Rita e Manoel José.

    Os dois ficaram juntos durante todo o tempo em que trabalharam na casa de Miguel Taveira. Depois de conseguir arranjar “o valor de ambos”, a africana comprou, na década de 1820, suas cartas de liberdade. Manoel preferiu seguir para Macaé, cidade no Norte fluminense. Já sua mãe permaneceu no Rio de Janeiro. E não demorou a encontrar um amor. Em 29 de novembro de 1828, casou-se com Antonio José de Santa Rosa, também ex-escravo, que nascera na freguesia de São Miguel de Ipojuca, em Pernambuco.


    Durante quase sete anos, o casal vendeu hortaliças, legumes e aves em duas bancas na Praça do Mercado, também conhecida como Mercado da Praia do Peixe. Instalado à beira da Baía da Guanabara, nas proximidades do Largo do Paço (atual Praça XV de Novembro), esse grande centro de abastecimento de gêneros de primeira necessidade reunia quitandeiras, mercadores e carregadores africanos, pequenos lavradores e vendedores brasileiros e portugueses. Para incrementar seus negócios, Antonio e Rita ainda contavam com seis escravos.
    Maria Angola e Joaquina Benguela dedicavam-se aos “serviços de quitanda”. Já José Moçambique estava empregado como marinheiro. Juntando os “jornais” (dinheiro que os cativos deviam entregar ao senhor no fim de cada dia – ou de uma semana – de trabalho) com os rendimentos das barracas, eles acumulavam um bom patrimônio. Em pouco mais de um ano, a quitandeira Joaquina rendeu 180 mil-réis. E nas bancas, o lucro anual podia chegar a mais de um conto. Com este valor, podiam comprar pelo menos duas cativas como Joaquina, que, em 1846, teve seu preço de venda estipulado em 400 mil-réis.

    Além dos ganhos na praça, os dois também se uniam na devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Na irmandade, criada no Rio de Janeiro pelos africanos angolas, eles participavam de missas, festas e procissões em homenagem aos santos católicos e ainda encontravam apoio nos momentos mais difíceis, como em casos de doença ou morte. Só que, mais de seis anos após o casamento, a relação de Rita e Antonio andava mal. Cansada de ser maltratada pelo marido, a africana decidiu abrir um processo de divórcio. Antonio até se defendeu das acusações, mas acabou concordando em romper a união em fevereiro de 1835. De acordo com os autos da partilha amigável, Rita – que não teve mais filhos – ficou com uma “morada de casas” na cidade de Campos, no Norte do estado, três escravas e um conjunto de joias de ouro e prata.

    Dividida entre a Corte e o interior do Rio de Janeiro, ela voltava a ficar mais próxima de seu filho, que morava em Macaé, na mesma região fluminense. Não se sabe se ela ainda vendia suas quitandas. Mas quando faleceu, em 28 de maio de 1842, conservava todos os bens reunidos ao longo de tantos anos. Como seu único herdeiro, Manoel José precisou confirmar que era mesmo seu “parente de sangue”. E foi assim que, mais uma vez, refez suas histórias.


    Juliana Barreto Farias é autora da dissertação “Entre identidades e diásporas: negros minas no Rio de Janeiro (1870-1933)” (UFRJ, 2004) e co-autora do livro Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX (Alameda, 2008).


    Saiba Mais - Bibliografia

    FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

    HILL, Pascoe Grenfell. Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

    KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.