Chá de cadeira

Raimundo Nonato Pereira Moreira

  • A bordo do navio Espírito Santo, um viajante admira a “belíssima e arrebatadora” Baía de Todos os Santos, anotando em sua inseparável caderneta: “Escrevo rapidamente, direi mesmo vertiginosamente, acotovelado a todo instante por passageiros que irradiam por todas as direções sobre o tombadilho”.

    Não era uma viagem corriqueira, tampouco um passageiro qualquer. Euclides da Cunha, correspondente de guerra do jornal O Estado de S. Paulo, aportava na capital baiana a caminho do teatro de operações da Guerra de Canudos. Naquele 7 de agosto de 1897, o engenheiro militar nem imaginava que seria necessário domar sua ansiedade e impaciência durante a estada em Salvador. Ela se estenderia por quase um mês.

    Mesmo distante do território conflagrado, Euclides já havia comentado o conflito de Canudos em dois ensaios intitulados “A Nossa Vendéia”, publicados em 14 de março e 17 de julho daquele ano. Nesses textos, avaliava a derrota das tropas comandadas pelo tenente-coronel Antônio Moreira César frente aos adeptos de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, no arraial de Canudos, em 3 e 4 de março. Euclides estabeleceu uma “aproximação histórica” entre os acontecimentos do sertão da Bahia e os da Vendéia (1793-1796), uma revolta de camponeses e nobres franceses, católicos e monarquistas, que se opunham aos princípios da Revolução de 1789.

    A repercussão favorável de seus ensaios foi decisiva para a indicação de Euclides como correspondente de O Estado de S. Paulo. O contrato entre a empresa jornalística e o engenheiro determinava que ele deveria enviar material do teatro das operações e tomar notas para escrever posteriormente um “trabalho de fôlego” sobre Canudos e o Conselheiro. Outros jornais, como o Diário de Notícias e o Jornal do Comércio, já tinham se adiantado ao Estado ao enviarem seus repórteres aos sertões, mas, graças a um pedido de Júlio Mesquita, proprietário do jornal, Euclides foi incorporado ao Estado-Maior do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt. Em 3 de agosto, no Rio de Janeiro, juntou-se ao staff do ministro que partiu para a Bahia levando consigo uma caderneta de anotações batizada de A Nossa Vendéia: Diário de uma expedição.

    Na capital baiana, Euclides hospedou-se na casa de um tio paterno, José Pimenta da Cunha, localizada na Rua da Mangueira, vizinha ao centro da cidade. Em ritmo febril de trabalho, o correspondente expediu telegramas e reportagens, percorreu hospitais e fortes, entrevistou militares feridos, habitantes da cidade e um dos prisioneiros canudenses, o adolescente chamado Agostinho. Para preencher o vazio de notícias colhidas diretamente do front, pesquisou sobre Canudos e o Conselheiro “na poeira dos arquivos” da cidade. Ao longo da permanência forçada em Salvador, Euclides elaborou onze reportagens e remeteu trinta e cinco telegramas para O Estado de S. Paulo.

    Além de produzir notícias, o próprio Euclides foi destaque nas páginas da imprensa local. Jornais como Correio de Notícias, Diário de Notícias, Diário da Bahia, A Bahia e Jornal de Notícias mencionaram a presença do tenente reformado e engenheiro em Salvador. Euclides dedicou especial atenção ao Diário da Bahia. No dia 8 de agosto, o vespertino noticiava a primeira das muitas visitas do correspondente à redação, na Praça Castro Alves. A matéria assinalava que o visitante fora incumbido de estudar as condições geológicas do terreno de Canudos e escrever um livro sobre a guerra: “Muito há a esperar dos talentos e competências desse digno e estudioso homem de letras, que tanto nos penhorou com a sua visita”. O jornal também reproduziu algumas das reportagens escritas por Euclides para O Estado de S. Paulo.

    Aquela temporada ao mesmo tempo próxima e distante da guerra foi torturante para Euclides. O correspondente receou não presenciar a tomada do “arraial maldito” pelas tropas da República devido aos constantes adiamentos da partida do ministro para o front. Na reportagem de 20 de agosto, comunicou aos leitores suas andanças: “Aguardando ainda, contrafeito, a próxima partida para o sertão, percorro – desconhecido e só –, como um grego antigo nas ruas de Bizâncio, as velhas ruas desta grande capital, num indagar persistente acerca das suas belas tradições e observando a sua feição interessante de cidade velha chegando, intacta quase, do passado a estes dias agitados”. Confessou seus sentimentos: “É realmente inevitável esta intercorrência de sensações estranhas e diversas, invadindo de modo irresistível o assunto e programa estabelecidos. Numa hora assaltam-me, às vezes, as mais desencontradas impressões”. E, embora ansioso por partir para Canudos, reclamou da falta de tempo para pesquisar Salvador mais a fundo.

    “Na poeira dos arquivos”, tentava seguir os rastros do Conselheiro – fosse em brochuras antigas, num exemplar de 1894 do jornal A Pátria, de São Félix do Paraguaçu, ou no livro Descrições práticas da província da Bahia (1888), em que o tenente-coronel Durval Viera de Aguiar narrava ter encontrado o “beato” quando passou por Monte Santo, em 1882. Na reportagem escrita em 23 de agosto, Euclides adotou um tom de despedida: “Será esta a última carta que escreverei deste ponto onde, involuntariamente, fiquei retido, lutando com uma falta de assunto extraordinária, que já deve ter sido percebida. Ao chegar ela aí, já estaremos a caminho do sertão”.

    Mas o correspondente ainda teria que aguardar. A partida do comboio chefiado pelo ministro da Guerra ocorreu somente em 30 de agosto. E foi concorridíssima. Euclides estimou a presença de mais de duas mil pessoas na Estação da Calçada. Segundo o Diário da Bahia, a comoção tomou conta da multidão no momento do embarque das tropas: “Lenços e bonés agitavam-se ao som da música das bandas militares e das aclamações de toda a gente, que ali assistia à partida de mais um punhado de heróicos defensores da lei e da República”.

    Euclides finalmente partiu com destino a Queimadas, parada de trens mais próxima do arraial de Canudos. De lá, seguiu para Monte Santo, base das operações militares, onde permaneceu até 13 de setembro. No caminho, descreveu as impressões acerca dos lugares por onde passou: Camaçari, Pojuca, Catu, Alagoinhas, Queimadas, Tanquinho, Cansanção, Quirinquinquá e Monte Santo. Às 14 horas do dia 16 de setembro, alcançou por fim o cenário do massacre: chegou à “Tróia de taipa dos jagunços” e deparou-se com uma cidade semidestruída pelos bombardeios, com sua população torturada pela fome e pela sede. Segundo o biógrafo Roberto Ventura, o correspondente presenciou menos de três semanas da luta, deixando Canudos na manhã de 3 de outubro. Por conta dos seus acessos de febre, resultantes das condições da guerra, não assistiu aos últimos combates, ao incêndio e à queda da cidade, nem à exumação do cadáver do Conselheiro. Ausentes das reportagens, essas cenas seriam narradas em Os Sertões, mas de forma sumária.

    Euclides retornou a Salvador no dia 13 de outubro. “Às 10 horas e 40 minutos da manhã, o trem ordinário trouxe mais os seguintes oficiais, que estiveram nos últimos combates de Canudos e 68 praças de diversos corpos do exército. Eis os nomes dos oficiais: engenheiros militares capitão [sic] Euclides Cunha e tenente Domingos Alves Leite”, relatou o Jornal de Notícias. Apesar do erro na patente do engenheiro militar, esta informação biográfica era até hoje desconhecida no âmbito dos estudos euclidianos.

    No dia 16, o mesmo jornal publicou a exoneração do nosso personagem do cargo de adido do Estado-Maior do ministro da Guerra, com um curioso (e macabro) detalhe: somente algumas linhas separavam a nota da publicação do auto de exumação do cadáver de Antônio Conselheiro. Nesse mesmo dia, a bordo do vapor Brasil, Euclides da Cunha partia para o Rio de Janeiro, deixando para trás a “Bizâncio dos trópicos”. O Diário da Bahia ainda lhe dedicaria uma generosa coluna, antecipando profeticamente a importância da futura obra do escritor: “Dispensemo-nos de acrescentar a estas linhas quanto de valioso para a história e para as letras nacionais será esse livro que a pena laureada do distinto engenheiro vai traçar”.

    Muito antes de publicar Os Sertões, Euclides da Cunha já havia provado que fôlego para escrever não lhe faltaria, transformando a Guerra de Canudos (e até mesmo a espera por ela) em uma verdadeira usina de textos.

    Raimundo Nonato Pereira Moreira é professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e coordenador do projeto de pesquisa “Euclides da Cunha na Bahia”.


    Saiba Mais - Bibliografia:

    CALAZANS, José. “Euclides da Cunha nos jornais da Bahia”. Revista de Cultura da Bahia. Salvador, nº 4, p. 47-50, jul. dez. 1969.

    CUNHA, Euclides da. Diário de uma expedição. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    _____. Os Sertões (Campanha de Canudos). São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

    VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.