Na Green Library da Universidade de Stanford, seção Special Collections, há um caderno de tamanho escolar, com capa, sem pauta, com letra miúda mas legível, sem autor nem título geral, sem numeração de páginas e sem data, catalogado sob o nome “À Margem da História/ Mss Codex 0002”.
Indicado gentilmente por Mary Louise Pratt, professora da New York University, trata-se, sem dúvida, de um manuscrito de Euclides da Cunha, com versões preliminares de capítulos do livro de mesmo título, publicado postumamente em 1909.
À Margem da História é subdividido em quatro partes. Na Parte I, intitulada “Terra sem história (Amazônia)”, o manuscrito contém uma versão preliminar e parcial das “Impressões gerais”, com abundantes correções do autor. Há também estudos preparatórios para todos os capítulos da Parte II (“Vários Estudos”) e três textos que não aparecem na publicação: “O último bandeirante”, “Regatão Sagrado” e “Alma Brasileira”.Nas “Impressões gerais”, a versão manuscrita, além de mostrar diversas variantes estilísticas, contribuindo para documentar o método euclidiano de escrever, permite corrigir uma aparente omissão de Euclides, que no livro publicado em 1909 parece atribuir ao cartógrafo Guillaume de L’Isle a lenda dos “titânicos curriquerês”. Claramente foi omitido um trecho do original, pois a edição de 1909 publicada no Porto pela Livraria Chardron traz “os titânicos ‘curriquerês’ de Guillaume de L’Isle”, enquanto o manuscrito diz mais corretamente: “os titânicos ‘curiquerês’ de Christovam da Cunha, os ‘geants riches en or’ de Guillaume de L’Isle”. Portanto, Euclides atribuiu corretamente ao jesuíta Cristóbal de Acuña, cronista da viagem de Pedro Teixeira ao Amazonas em 1639, a menção aos curriquerês. Foi essa fonte que o cartógrafo francês Guillaume de L’Isle usou ao referir-se aos “geants riches en or” em mapa do “País das Amazonas” de 1703, com apoio na referência de Acuña aos seus “grandes discos de ouro nas orelhas e narizes”. A omissão, que deve ter escapado a Euclides na leitura que fez das provas pouco antes de morrer (conforme nota do editor), perpetuou-se em todas as edições posteriores de À Margem da História.
Dois parágrafos riscados por Euclides seriam o fecho das “Impressões Gerais”: neles, o escritor critica a “hipertrofia da imaginação” dos cientistas-viajantes que haviam escrito sobre a baixada amazônica, particularmente Wallace (1823-1913), Agassiz (1807-1873), Hartt (1840-1878) e Katzer (1844-1903). Euclides concluía com uma recomendação de prudência aos cientistas (“há-se de imitar o exemplo de Walter Bates”), mas, aparentemente, achou melhor não se arvorar em crítico de tantos sábios eminentes. Sábia moderação, já que a maioria das hipóteses desses cientistas hoje é aceita, como o escoamento original do Amazonas para o Pacífico, a ligação dos continentes americano e africano e a origem antrópica das terras pretas amazônicas.
A seguir, o início manuscrito das “Impressões Gerais” de À Margem da História, incluindo os dois parágrafos suprimidos, e o inacabado “Regatão Sagrado”. As palavras e passagens riscadas pelo autor aparecem entre colchetes. A ortografia e a pontuação do autor foram mantidas.
Preliminares – A baixada amazônia. História da Terra e do homem. 1a
Ao versar certa vez um assumpto seccamente positivo o professor Frederico Hartt vio-se tão despeado das concisas formulas scientificas e tão alcandorado no sonho que houve de colher, de subito, todas as velas á phantasia:
“– Não sou poeta. Escrevo a prosa da minha sciencia. Revenons!”
Disse e encarrilhou-se nas deducções rigorosas. Mas, decorridas duas paginas não se forrou a novos arrebatamentos e reincidiu no enlevo... Era inevitavel. Elle estudava a geologia do Amazonas e o grande rio evoca [irresistivelmente] em tanta maneira o maravilhoso, numa suggestão permanente que empolga por igual o chronista ingenuo, o aventureiro romantico, o cartographo phantasista e o sabio precavido. As ‘amazonas’ de Orellana, os titanicos ‘curiquerês' de Christovam da Cunha, os ‘geants riches en or’ de Guillaume de L’isle, e a ‘Manôa del Dorado’ de Walter Raleigh, que formam, no passado, um tao deslumbrante cyclo mythologico, acolchetam-se em nossos dias às mais imaginosas hypotheses scientificas. Há uma hypertrophia da imaginação no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se os mais robustos espiritos no lhe balancearem a grandeza. D’ahi, no proprio terreno das pesquisas objectivas, as visões maravilhosas de Humboldt, e toda a serie de conjecturas [dispares ou contrastantes] em que se travam, contrastantes, os mais discordes conceitos, desde a dynamica dos terremotos de Russel Wallace ao biblico formidavel das geleiras prediluviannas de Agassiz. Parece que, alli, a imponencia dos scenarios implica o discurso rectilineo dos processos analyticos: às inducções avantajam-se os lances da phantasia. As verdades desfecham em hyperboles. E figura-se, por vezes, um idealisar enorme o que resulta dos elementos tangiveis da realidade surprehendente, por maneira que o sonhador mais [ensofregado] desensofrido [sente-se bem] se encontra à vontade na parceria dos sabios fascinados. Vai, por ex: com o lucido Frederico Katzer, a seriar, a escandir e a confrontar velhissimos petrefactos ou graptolithos, numa longa romaria ideal pelos mais remotos pontos do globo e pelas mais remotas idades, largo tempo, a debater-se entre as classificações massiças, a enredar-se na trama das raízes gregas das nomenclaturas bravias, e de subito, entre os capitulos serenos do sabio, abre-se-lhe uma pagina de Milton: as analyses positivas rematam em prodigio, as vistas abreviadas nos microscopios desafogam-se, dilatando-se na visão retrospectiva de um passado millenario; e traçadas as linhas estupendas de uma geographia morta, abre-se-lhe aos olhos a perspectiva maravilhosa daquelle extincto oceano meio-devonico que se estendia sobre o matto-grosso e a Bolivia, cobrindo quase toda a America e chofrando no levante as velhas vilas de Goyaz e Minas onde se traçavam as últimas lindas occidentais da Brazília-ethyopia que aterrava o Atlantico sul, indo abranger a Africa... Segue com os abnegados naturalistas da comissão Morgan, e a historia geologica do grande rio, a despeito das linhas mais definidas não perde o traço grandioso, desenvolvendo-se ás duas margens do canal terciario que [ligava] separava o plannalto brasileiro das serras das Goyanas [ultimamente] por longo tempo até que o transmudasse no maior dos estuarios, a lenta sublevação dos Andes, no ocidente. Por fim, ainda adscripto ás observações actuaes e à physiographia presente da extraordinaria arteria, restam-lhe outros agentes nímio perturbadores dos conceitos irredutivelmente scientificos.
Seguem os dois parágrafos completamente riscados por Euclides:
[Para evital-los há-se insistir de imitar o exemplo de Walter Bates: fugir a suggestões da immensidade, refugiando-se largos annos no recanto de uma especialidade num reduzido tracto de territorio. O grande naturalista assistiu doze anos na Amazonia; effectuou descobertas tão serias que esteiaram o darwinismo nascente; supreendeu toda a sciencia europeia; transfigurou a historia natural... e durante aquele periodo não sahiu da estrita orla de litoral que se desata entre Belem e Teffé. Não viu a Amazonia toda. Por isso mesmo viu mais e melhor que todos os seus predecessores.]
[O caso é expressivo. Durante muitos decennios, ainda, a terra que nos espanta já pela grandeza, já pela originalidade, exigirá estes esforços parcelados de longas pesquizas analyticas, como se o espirito humano não pudesse abrangela, a golpes, sem o apparatho de longas elaborações preliminares. O contrário acarreta o incessante oscilar entre os dois extremos invariáveis das idealizações exagerativas. Traçou-lhes a norma o lucido naturalista de Leicester, que está para os estudos amazonicos como Lyell para os geologicos. Gastando um dilatado tempo num breve espaço, quando até então se tentava abranger em percurso curto aquela immensidade, o seu processo ... ]
Regatão Sagrado
Há uns vinte anos o bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa, comovido diante da decadência [moral da Amazônia] dos costumes amazônicos planeou construir o Cristóforo – navio-igreja ou vasta basílica fluvial com os seus campanários, os seus púlpitos, os seus batistérios, os seus altares e o seu convés afeiçoado em nave – flutuando perpetuamente sobre as grandes águas, indo e vindo em [permanente] constantes giros dos mais populosos rios aos paranás mais desfrequentados, por maneira que das cidades ribeirinhas aos vilarejos mais tolhidos e sem nome, onde ele ancorasse nas escalas transitórias, se difundissem os influxos alentadores da [cruz] fé, e descessem sobre as [populações] gentes simples, relegadas [do convívio civilizado] da cultura humana o consolo, a surpresa magnífica e o encanto das [inesperadas] repentinas visitas do bom Deus em viagem.
A ideia não se efetuou. Foi pena. Ela denunciava, documento sobre a índole romântica do prelado, um lúcido conhecimento do homem, e tato sutilíssimo de verdadeiro apóstolo sabedor do império surpreendente dos símbolos e das imagens. Imagine-se a cena: um [povoado] arraial longínquo, adormecendo ao cerrar da noite, entristecedoramente, na quietitude daquelas solidões [tristonhas] monstras; e despertando na antemanhã seguinte com uma catedral ao lado, feito a metrópole de um dia da civilização errante. No alto da barranca, despertas pelos sinos, as gentes surpreendidas, em massa, vistas pasmadas, já não se conhecem; o próprio chão onde nasceram e assistem. Um milagre tangível: [desapareceu a barreira avergoada dos enxurros, desapareceu o... ]
Mauro W. B. de Almeida, professor da Universidade Estadual de Campinas, e Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago, são antropólogos e organizadores de Enciclopédia da Floresta. Alto Juruá: Práticas e Conhecimentos das Populações. (São Paulo: Companhia das Letras, 2002).
Saiba Mais - Bibliografia:Pontes, Eloy. A vida dramática de Euclydes da Cunha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.
Rabello, Sylvio. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Instituto Nacional do Livro, 1983.
Tocantins, Leandro. Euclides da Cunha e o paraíso perdido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Ventura, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Em primeira mão
Mauro W. B. de Almeida e Manuela Carneiro da Cunha