Euclides da Cunha passou nove anos de sua vida, entre 1886 e 1896, à exceção de 1889, no Exército. Além disso, viveu cercado de militares. Na Escola Militar, fez alguns amigos para toda a vida, como Alberto Rangel. Seu sogro, o futuro general Solon, e três cunhados pertenciam a uma tradicional família de militares gaúchos. Dilermando de Assis era aspirante a oficial quando o matou, em 1909, além de ser também filho e sobrinho de militares gaúchos. O irmão de Dilermando, Dinorah, era aluno da Escola Naval na mesma época. O segundo filho de Euclides, Euclides Ribeiro da Cunha Filho, era aluno da Escola Naval quando foi morto por Dilermando, em 1916.
Militares foram protagonistas de dois momentos cruciais de sua biografia – o que o tirou do anonimato e o que o tirou da própria vida. O primeiro verificou-se em 4 de novembro de 1888 na Escola Militar, quando o ministro da Guerra, senador Tomás José Coelho de Almeida, passava em revista a tropa dos cadetes. Segundo versão do próprio Euclides, transmitida oralmente a amigos, ele atirou ao chão a arma em protesto contra os colegas que apresentaram armas ao ministro e não deram, de acordo com o que tinham combinado, um viva à República. “Infames!”, gritou ele na ocasião. “A mocidade livre cortejando um ministro da Monarquia!” O episódio repercutiu na imprensa e nas duas casas do Parlamento, e provocou a exclusão de Euclides do Exército, por incapacidade física, em 14 de dezembro desse ano. Após a proclamação da República, ele foi logo readmitido, mas seu nome ficara marcado na política pelo republicanismo; no Exército, pela rebeldia.O segundo momento, com tintas de tragédia grega (ele mesmo já se dissera meio grego), aconteceu há cem anos, em 15 de agosto de 1909, numa casa do bairro da Piedade, no Rio de Janeiro. Euclides entrou transtornado na casa do amante de sua mulher, onde também estavam dois de seus filhos. O aspirante a oficial Dilermando de Assis era campeão de tiro e costumava divertir-se acertando limões jogados ao ar. No tiroteio que se seguiu, Euclides foi morto por Dilermando, que saiu ferido, assim como Dinorah.
Apesar das estreitas relações com militares, nem Euclides gostava do Exército, nem o Exército gostava dele. Já na Escola Militar, dissera a um colega que seu desejo era tornar-se jornalista. Em sua correspondência, expressou mais de uma vez o desgosto com a carreira. A farda era pesada demais para seus ombros, escreveu, era incompatível com sua saúde e com seu gênio, razão pela qual pediu baixa em 1896. Do ponto de vista do Exército, ele possuía pífia fé de ofício, povoada de licenças médicas e rebeldias, ao contrário de Dilermando, que chegou a general. Além disso, aos militares do Exército não agradaram em nada as duras críticas feitas à corporação em Os Sertões.
Um gênio explosivo não podia, de fato, conter-se dentro da disciplina da caserna, como não se continha dentro de qualquer rotina, nem mesmo da rotina da vida.
José Murilo de Carvalho é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências. Autor de D. Pedro II: ser ou não ser (Companhia das Letras, 2007).
Fardas e farpas
José Murilo de Carvalho