Desde a Revolução Francesa, marco inicial da luta feminista, as mulheres identificaram que a construção de sua cidadania dependia de dois caminhos aparentemente opostos: igualdade e diferença.
Olympe de Gouges morreu na guilhotina, em 1793, por argumentar que, “por natureza”, as mulheres tinham direitos iguais aos dos homens. Ela escreveu a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, explícita provocação à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789. Olympe havia percebido que, além de garantir a igualdade de direitos entre homens e mulheres, era preciso lutar pelo reconhecimento das diferenças, a fim de atender às demandas particulares.Na Inglaterra do mesmo período, Mary Wollstonecraft defendia que as mulheres têm capacidades, talentos, necessidades e preocupações específicas, que devem ser levados em conta na sua cidadania. O direito à diferença, no entanto, não deveria ser incompatível com o direito à igualdade – de direitos civis, como o voto, e de direitos trabalhistas, como salários iguais para funções equivalentes.A tensão entre estes dois polos pautou as teorias feministas desde então, eclodindo em alguns episódios especialmente simbólicos, como o caso Sears, ocorrido nos Estados Unidos no final dos anos 1970. Acusada de discriminação sexual contra mulheres, essa grande rede de lojas de departamento se empenhou na defesa da diferença entre os gêneros. Supostos interesses distintos em relação aos postos de trabalho explicariam a maior presença masculina nos cargos mais altos de sua hierarquia, ou seja, mulheres ocupavam postos inferiores por serem diferentes dos homens: não estariam, “por natureza”, interessadas em funções que exigem maior dedicação e jornadas mais longas, com salários mais altos. A acusação, por sua vez, argumentava pela igualdade de direitos, alegando que as oportunidades para homens e mulheres eram desiguais, resultado da discriminação no ambiente de trabalho e da hierarquia de gênero que inferioriza as mulheres.Duas historiadoras feministas foram peças-chave no julgamento. Rosalind Rosenberg testemunhou pela defesa, tentando demonstrar que homens e mulheres não tinham os mesmos interesses em relação aos postos de trabalho. Alice Kessler-Harris colaborou com a acusação, expondo ao tribunal exemplos de que, quando há oportunidades, as mulheres assumem posições não consideradas tradicionalmente “femininas”. Mas o que fez do caso Sears um episódio singular na discussão sobre a disjuntiva entre igualdade e diferença foi o fato de que, em sua tréplica, a defesa se valeu de argumentos da testemunha de acusação.
Anos antes do julgamento, Alice Kessler-Harris havia publicado um artigo sobre as diferenças na maneira como homens e mulheres encaram o mercado de trabalho, mostrando que elas são mais orientadas por valores domésticos e menos individualistas do que eles. Este argumento foi utilizado para reforçar a lógica da defesa feita por Rosenberg – para quem, mesmo diante de oportunidades iguais, as mulheres fazem escolhas baseadas em critérios “femininos”, diferentes do modelo tradicional masculino. Segundo Alice, são essas escolhas que mantêm as mulheres em postos menos competitivos ou menos orientados para ganhos econômicos.A defesa venceu o debate e convenceu a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego (EEOC, na sigla em inglês) de que a distribuição dos postos na Sears poderia ser explicada pelas diferenças entre homens e mulheres, e não como resultado de uma política discriminatória da companhia. O caso foi emblemático porque, pela primeira vez, a discriminação sexual no trabalho foi tratada como uma escolha das próprias mulheres. E o argumento seria usado por empresas em 54 outros processos.A decisão levou teóricas feministas a discutirem o que mais interessa às mulheres: políticas públicas que as tratem de forma igual aos homens, ignorando diferenças culturais e sociais entre elas, ou o reconhecimento dos valores e dos comportamentos femininos? Coube à historiadora Joan Scott colocar em discussão o resultado do caso Sears e propor que a oposição entre igualdade e diferença é, na verdade, um falso impasse. Ela trabalha com uma ideia a princípio muito simples: o oposto da igualdade é a desigualdade, e é esta que leva à discriminação. Por isso não seria preciso escolher entre uma coisa e outra, mas pensar que não se deve nem abandonar o direito à diferença, nem o direito à igualdade.
Submeter a mulher a uma identidade humana genérica – sem levar em conta suas diferenças – seria voltar ao tempo em que a história dos homens era considerada como a história universal. Adotar apenas a ótica da igualdade significaria, também, deixar de fora as diferenças que existem dentro das categorias “mulheres” ou “homens”. Por outro lado, defender apenas a identidade das mulheres seria retornar a um essencialismo metafísico fundado numa suposta “natureza feminina”, ignorando a igualdade inerente ao vivente humano. E, ainda pior, enxergar somente as diferenças seria se submeter às discriminações historicamente derivadas delas.As demandas pela igualdade necessariamente evocam e repudiam as diferenças – que em um primeiro momento não permitiram a igualdade. Scott parte daí para o argumento de que a tensão entre identidade de grupo e identidade individual não pode ser resolvida: é uma consequência das formas pelas quais a diferença é utilizada para organizar a vida social. Para a historiadora, a oposição igualdade/diferença é uma oposição binária convencional – como são as oposições natureza/cultura, passivo/ativo, forte/fraco e masculino/feminino, que sustentam a hierarquia de gênero.Tal oposição não pode estruturar as escolhas da política feminista, pois não representa a relação entre os dois termos e ainda coloca uma falsa questão: ser ou “feminista da diferença” ou “feminista da igualdade”, num tipo de proposição em que se deve forçosamente optar por um dos lados.Nem a igualdade elimina a diferença, nem a diferença exclui a possibilidade de igualdade. “Feministas não podem desistir da ‘diferença’, que é a ferramenta de análise mais criativa que temos. Mas também não podemos desistir da ‘igualdade’, pelo menos enquanto quisermos dialogar com os princípios e os valores de nosso sistema político”, argumenta Scott. Ter o mesmo direito que os homens não é suficiente para garantir demandas específicas da mulher. Um bom exemplo é a licença-maternidade, que passou a ser concedida às mulheres em nome da diferença e hoje inspira inclusive a reivindicação masculina de direito à parentalidade.Diante do dilema entre a defesa da igualdade de direitos e sua compatibilidade com o reconhecimento da diferença sexual, é preciso formular uma dupla resposta. De um lado, desmascarar a relação de poder que coloca a igualdade como a antítese da diferença. Reconhecer que o contrário da igualdade não é a diferença, mas a desigualdade serve para afirmar a premissa de direitos iguais. De outro lado, recusar opções políticas que se restrinjam à mera oposição entre homens e mulheres é uma forma de afirmar a diferença sexual sem subsumir as mulheres na categoria geral do “humano” – perdendo de vista a diversidade do feminino.A oposição binária homens/mulheres é mais uma que só serve para esconder as diferenças existentes entre grupos, como se eles fossem uniformes. O caminho alternativo para escapar dessas falsas dicotomias é a recusa estratégica em opor igualdade e diferença. O direito à diferença é o verdadeiro sentido da igualdade.Carla Rodrigues é professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de Coreografias do Feminino (Ed. Mulheres, 2009).Saiba Mais:PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1998.SCOTT, Joan. A cidadã paradoxal, as feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis: Editora Mulheres, 2002.
Iguais na diferença
Carla Rodrigues