O noticiário em torno da posse de Dilma Rousseff, em 1º de janeiro de 2015, não se restringiu a análises políticas. Abriu espaço também para comentários sobre sua roupa. Para além dos elogios e das críticas – como a que comparou seu traje a uma “capa de botijão de gás” – a questão é: toda essa discussão sobre a aparência da presidenta reeleita se deve ao fato de ser uma mulher na Presidência? É puro machismo? Costumeiramente se exige elegância, beleza e juventude das primeiras-damas da nação e das mulheres da elite. Muita coisa mudou para as mulheres a partir da segunda metade do século XX, graças à chamada “segunda onda” do feminismo. Mas nem todas as pautas foram alcançadas.
Desde meados dos anos 1960 nos Estados Unidos (e em outros países a partir de 1970) ressurgiram movimentos sociais formados por mulheres. Muitos se diziam feministas, outros se autodenominavam “Movimentos de Libertação das Mulheres”. Tinham entre as principais pautas o direito ao corpo e ao prazer. Surgida no início dessa década, a pílula anticoncepcional garantia, de forma mais segura, a separação entre procriação e sexualidade, sob o pleno controle das mulheres. Os outros métodos contraceptivos disponíveis não ofereciam tanta segurança e discrição.No mesmo ambiente formaram-se os primeiros “grupos de consciência”. Eram constituídos somente por mulheres, frequentemente casadas e já com filhos crescidos. Começaram a se reunir nas casas umas das outras, em cafés ou outros locais públicos. As reuniões costumavam começar com poucas integrantes, mas cada participante deveria trazer na próxima sessão uma convidada, a quem chamavam de “irmã”. À medida que os grupos cresciam, eles se dividiam e tinham que criar outros núcleos em lugares diferentes. A ideia era formar redes, numa irmandade que reunia apenas mulheres porque acreditavam que a presença de homens inibiria sua espontaneidade. Eram chamadas de “feministas radicais”.No mesmo ambiente formaram-se os primeiros “grupos de consciência”. Eram constituídos somente por mulheres, frequentemente casadas e já com filhos crescidos. Começaram a se reunir nas casas umas das outras, em cafés ou outros locais públicos. As reuniões costumavam começar com poucas integrantes, mas cada participante deveria trazer na próxima sessão uma convidada, a quem chamavam de “irmã”. À medida que os grupos cresciam, eles se dividiam e tinham que criar outros núcleos em lugares diferentes. A ideia era formar redes, numa irmandade que reunia apenas mulheres porque acreditavam que a presença de homens inibiria sua espontaneidade. Eram chamadas de “feministas radicais”.
Esses grupos – que passaram a ter também mulheres jovens – pretendiam tomar consciência da “condição feminina”. Entendiam que não era a biologia que as definia, mas a cultura em que foram criadas e que as desqualificava, pois eram consideradas menos inteligentes e mais frágeis que os homens. A exigência de beleza e juventude foi questionada na famosa “queima de sutiãs”, em Atlantic City, nos Estados Unidos, em 7 de setembro de 1968. No evento, o Movimento de Libertação das Mulheres convidou todas a jogar no lixo os acessórios que remetiam a esses valores – como espartilhos, cílios postiços, maquiagem, saltos altos e, claro, sutiãs.
Leia também
Feminismos - Modos de fazer, modos de pensar
Nas reuniões, as integrantes faziam relatos de como viviam diferentes situações de seu cotidiano. Sob uma metodologia chamada de “Linha da Vida”, falavam de corpo, menstruação, aborto, desejo, prazer, diferença no tratamento familiar em relação a elas, relacionamento com o marido, com o pai, com os homens. Enfim, consideravam que sua vida privada reproduzia valores da sociedade, portanto, do coletivo. Daí o slogan “O pessoal é político”. Questionavam os preconceitos, o lar como seu “espaço natural” e a maternidade como obrigação de toda mulher casada.
Outros movimentos sociais também contaram com a presença de mulheres naquele período: as mobilizações juvenis de maio de 1968, os hippies, os grupos que lutavam pelos direitos civis dos negros, contra a guerra do Vietnã, contra a corrida armamentista. Mas em muitos casos elas se sentiam menosprezadas pelos companheiros: queixavam-se de serem incumbidas de tarefas consideradas menos importantes, como datilografar, reproduzir material de divulgação, distribuir panfletos, fazer café, limpar os ambientes. Participavam das reuniões, mas suas vozes eram desqualificadas. As decisões políticas estavam sempre a cargo dos homens.
Por essa razão, várias organizações passaram a contar com “alas femininas”. Reuniam-se em separado, formando “grupos de consciência” no interior desses movimentos sociais. Ali, a fala de cada uma era assegurada e qualificada. Logo foram criticadas e acusadas pelos companheiros de estarem dividindo o movimento. Isto não as impediu de continuar: os grupos se espalharam mesmo em países sob regimes ditatoriais, como Brasil, Argentina, Chile e Bolívia.
Ainda que tenha havido várias articulações e discussões anteriores, 1975 – definido pela ONU como o Ano Internacional da Mulher – é considerado o marco inicial da “segunda onda” do movimento feminista no Brasil. No Rio de Janeiro, algumas mulheres que integravam grupos de consciência, como a professora e psicóloga Mariska Ribeiro (1937-2004), conseguiram patrocínio da ONU para realizar um evento que ocorreu na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), intitulado “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”. Nesse encontro, organizaram o Centro da Mulher Brasileira (CMB). Pretendiam, entre outras coisas, criar um “departamento de ação comunitária para tratar concretamente e em nível local dos problemas da mulher”. No mesmo ano foi realizado na Câmara Municipal de São Paulo o “Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista”. Dali nasceu o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira.
Ainda em 1975, foi para as ruas o número zero do periódico Brasil Mulher, que tinha à frente a educadora e jornalista mineira Joana Lopes. Impresso inicialmente em Londrina, no Paraná, mais tarde passou a ser publicado em São Paulo, mantendo-se em circulação, mesmo de forma irregular, até 1980. O folhetim vinculava-se, a princípio, muito mais à luta pela anistia e contra a ditadura do que às questões feministas.
Outro jornal ligado ao movimento de mulheres surgiu em São Paulo em junho de 1976: o Nós Mulheres circulou até 1978 sob a gestão da jornalista e antropóloga Marisa Correa. Sua equipe se declarava desligada de partidos políticos, distante da “militância política organizada” e com a intenção de privilegiar o tema “Mulher”. Proclamavam-se, já no primeiro número, feministas. Na década seguinte, surgiram inúmeros outros periódicos que também passaram a se definir dessa forma. Entre eles, destaca-se o Mulherio, publicado em São Paulo entre 1981 e 1987, que focalizava, mais que os outros, as questões da sexualidade e do corpo.
A pauta principal desse feminismo era “Nosso corpo nos pertence”. Questionavam o sexo como definidor de comportamentos e a heterossexualidade como norma. E não queriam se submeter a padrões de juventude e beleza. Reivindicavam a descriminalização do aborto e a contracepção segura, denunciavam o estupro e a violência doméstica, temas com visibilidade na imprensa a partir de meados do século, como as mortes de Aída Curi (1958), em que o réu foi absolvido com base na desqualificação do comportamento da vítima, e de Angela Diniz (1976), em que o réu não foi absolvido graças à atuação feminista. A “segunda onda” provocou o surgimento do protagonismo feminino nos espaços públicos, com uma agenda política e cultural que incluía direitos e comportamentos individuais.
Hoje, entendemos como movimentos feministas aquelas lutas que reconheceram as mulheres como oprimidas, afirmando que as relações entre homens e mulheres não são inscritas na natureza – e, portanto, são passíveis de transformação. Mas há também os movimentos de mulheres, estes, embora formados exclusivamente por elas, não trazem reivindicações e direitos específicos das mulheres.
Neste início do século XXI, as jovens feministas ainda reivindicam o direito ao corpo, denunciam a violência, o estupro e a acusação de que elas o provocam com suas roupas e comportamentos. As ferramentas, claro, mudaram. Já não há mais movimentos em bloco como nos anos 70 – hoje elas criam páginas de internet, realizam performances, aprendem diferentes formas de defesa pessoal.
Mudanças de padrões culturais antigos, porém, são difíceis e demoradas de se concretizarem. A roupa da presidente da República ainda é notícia.
Joana Maria Pedro é professora da Universidade Federal de Santa Catarina e autora, com Carla Pinsky, de Nova História das Mulheres no Brasil (Contexto, 2012).
Saiba mais
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Vols. 1 e 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
TELES, Amelinha & LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.
Meu corpo, minhas regras
Joana Maria Pedro