Movimentos de libertação. Assim se autodefiniam as principais organizações civis emergentes na segunda metade do século XX ocidental. Nos anos 1960 e 1970, feministas, grupos radicais do movimento negro e militantes pelos direitos dos homossexuais eram influenciados pelo contexto das guerras de libertação colonial e pela guerra do Vietnã. Estudantes secundaristas e universitários tornavam-se atores coletivos, e em suas lutas por “libertação” foram as vítimas preferenciais da repressão das ditaduras na América Latina.
Para a juventude que aspirava maior liberdade na vida pessoal, a ditadura foi uma tragédia. A agitação e a efervescência do final dos anos 1960, com seus festivais de música e de cinema e grandes encontros estudantis, foram substituídas pelo medo, à medida que o terrorismo de Estado atuava contra os “subversivos”. A moral cristã era tão onipresente que, nas invasões realizadas pela polícia na residência estudantil da USP, as pílulas anticoncepcionais e as bombas molotov eram apresentadas à imprensa e à opinião pública como provas incriminadoras. Uma estudante em cuja bolsa fossem encontradas pílulas era considerada prostituta, no sentido mais desqualificador que o termo pode ter.Em 1968, a União Nacional dos Estudantes (UNE) organizou um grande encontro clandestino em um sítio em Ibiúna, no interior paulista. Descoberto pelas forças repressivas, o evento terminou com a prisão de mais de mil lideranças estudantis. Destas, 157 eram mulheres. Também era considerável o engajamento feminino nas organizações que pegaram em armas contra a ditadura – como fizeram a presidente Dilma Rousseff e a ministra Eleonora Menicucci. Essa atitude representava uma profunda transgressão ao que era designado como próprio ao sexo feminino. Mesmo sem formular uma proposta feminista declarada, as militantes “comportaram-se como homens”: não apenas manejando armas e participando de ações de guerrilha, mas assumindo um comportamento sexual que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento. A militância era, em si, um instrumento de emancipação. Ao cair nas mãos da repressão e da tortura, essa transgressão de gênero resultava também em punições específicas, como diversas formas de abuso sexual e humilhações sofridas pelas mulheres pelos seus torturadores que eram homens.Foi no exílio que muitas militantes se tornaram feministas. Quando criaram família e passaram a viver um cotidiano de trabalho, estudos e cuidados de casa, o machismo dos seus companheiros se fez sentir. Com o golpe militar no Chile, em 1973, fecharam-se todas as portas da América do Sul para perseguidos políticos, e Paris passou a concentrar grande parte da esquerda exilada. Foi lá que as brasileiras entraram em contato com um feminismo com o qual tinham afinidade: um movimento autônomo de mulheres, com presença significativa de comunistas e socialistas, ligado a outros movimentos sociais e com uma importante editora de obras feministas, a Editons des Femmes. E extremamente solidário com as exiladas latino-americanas. As queixas das ex-guerrilheiras não se diferenciavam muito do padrão feminino francês, especialmente no tocante às tarefas domésticas e aos cuidados com os filhos. As feministas começavam a se insurgir contra a naturalização do trabalho doméstico como algo próprio da mulher. Um grupo importante para a formação teórica de muitas exiladas em Paris foi o Círculo das Mulheres Brasileiras, especialmente atuante entre 1973 e 1979. Annete Goldenberg e Angela Arruda são algumas dessas militantes que também escreveram sobre sua experiência.No período em que a repressão militar liquidava fisicamente muitos de seus oponentes, o movimento feminista aparece no Brasil comprometido com a luta pelas “liberdades democráticas”, e exerce papel ativo na campanha nacional pela anistia, desde 1975. Nesse ano, que marcou o início da “Década da Mulher” da Organização das Nações Unidas, diversos países assinaram compromissos de promover políticas públicas para superar as diferenças salariais entre homens e mulheres e implementar programas de planejamento familiar. Feministas brasileiras organizaram encontros e divulgaram material informativo sobre as diferentes formas de opressão da mulher, especialmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Dadas as profundas desigualdades da sociedade brasileira, o alcance do movimento feminista variou enormemente, concentrando-se mais nos principais centros urbanos e nas classes médias.
O processo de redemocratização abriu caminho para novas militâncias, que ampliaram os embates políticos e a relação dos movimentos sociais com o Estado, fortalecendo também os grupos ativistas dos direitos da mulher. Campanhas nacionais denunciaram o assassinato de mulheres por crimes “de honra”, o sexismo dos livros escolares e a impunidade do assédio sexual. Nem todos os grupos eram feministas, o que torna a expressão movimento de mulheres mais condizente com as lutas pela democracia, pela anistia, contra a carestia, por creches e pelo fim da violência contra a mulher que agitavam o país na virada para a década de 80.Após as primeiras eleições livres, realizadas em 1982, as feministas participaram do governo do estado de São Paulo, criando o primeiro Conselho da Condição Feminina (CCF) e as delegacias especiais para as mulheres. Mas os conselhos eram órgãos dependentes do Poder Executivo, o que comprometia seu caráter inovador. Mais importantes foram as conquistas consolidadas na Constituição Federal de 1988. No texto constitucional, a nova “família” se fundamenta no princípio da igualdade entre homens e mulheres e é descrita como “base da sociedade” à qual o Estado garante proteção. Os cônjuges exercem igualmente “os direitos e os deveres referentes à entidade familiar”, prevalece o princípio da igualdade jurídica entre todos os filhos, nascidos ou não no casamento, naturais ou adotados, e são reduzidos os prazos e as exigências para o divórcio. Finalmente, o preceito legal de família passa a incluir “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” — o que possibilita o reconhecimento da existência de diferentes formas de arranjo familiar.As conquistas legais não são suficientes, no entanto, para ofuscar o machismo, a ignorância, a superstição e outros preconceitos. Esses entraves justificam a importância do pensamento e da ação feministas na atualidade. Muitas são as questões pendentes. Uma das principais diz respeito aos direitos reprodutivos, especialmente o direito à interrupção de uma gravidez não desejada. Na maior parte dos países ocidentais este foi um direito adquirido a partir dos anos 1960. O único país no qual este direito é reconhecido na América do Sul é o Uruguai. No Brasil, onde existe grande tolerância com respeito à sexualidade e à exibição do corpo, a legislação não avançou nos últimos quarenta anos. Ao contrário, a repressão a médicos e pacientes suspeitos de aborto tem se tornado mais frequente. Uma das explicações mais evidentes para isso é a crescente influência das diversas igrejas, especialmente as evangélicas.Ter uma mulher na Presidência da República é exceção numa política com pouca participação feminina em posições de comando. O mesmo se dá em diferentes áreas, como o Judiciário e a divisão das riquezas materiais. Quarenta anos após o início da Década da Mulher, há inegáveis avanços a comemorar. Mas também muito a ser feito.Maria Lygia Quartim de Moraes é professora da Universidade de Campinas e autora de Feminismo, movimento de mulheres e a (re)construção da democracia em três países da América Latina (Unicamp, 2003).Saiba Mais:FREIRE, Alípio; ALMADA, Izaias; PONCE, J.A. de Granville (orgs.). Tiradentes, um presídio da ditadura. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. Coleção História do Povo Brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.RAGO, Margareht. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividdade. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
Militância libertária
Maria Lygia Quartim de Moraes