Pelo ideal democrático fundador do Iluminismo, a igualdade de direitos era um bem concedido ao homem. A mulher ainda era propriedade masculina. Em Do Contrato Social, de 1762, Jean-Jacques Rousseau defende que a divisão de papéis sociais teve início quando os dois sexos começaram a manter vínculos afetivos. Com o surgimento da família e o fim da comunidade primitiva, a mulher, que vive períodos de “impossibilidade” devido à gravidez, ficou incumbida de cuidar dos filhos e do lar. Já os homens deveriam sair para buscar alimentos. Assim, desde os primórdios, na visão do filósofo genebrino, a eles coube o espaço público. A elas, o privado.
Poucas mulheres se rebelaram contra esse pensamento. A inglesa Mary Wollstonecraft foi uma delas. Em 1792, publicou Uma reivindicação pelos direitos da mulher, obra considerada o gérmen do pensamento feminista. Apoiada no Iluminismo, ela reivindica igualdade de direitos para homens e mulheres, almejando a recuperação da dignidade feminina. A existência da desigualdade entre os sexos não seria fruto de um fator natural, mas da manipulação social masculina. Para Wollstonecraft, a solução seria o fim do impedimento da formação intelectual para as mulheres: com uma educação igualitária, elas teriam condições de ter uma profissão e conquistar sua independência.Contemporânea de Wollstonecraft, em 1791, Olympe de Gouges publica na França a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, em que afirma que qualquer Constituição que exclua a mulher não pode ser considerada. Exige a inclusão feminina na vida pública, educação igualitária, direito ao divórcio e partilha de bens entre o casal, reconhecimento legal de filhos bastardos e leis iguais para reger os crimes cometidos por ambos os sexos. A Declaração dos direitos da mulher e da cidadã foi dedicada à Maria Antonieta e encaminhada à Assembleia Nacional Francesa, que aprova suas ideias. Com a Revolução Francesa, Olympe de Gouges entra em choque com Robespierre e Marat. Eles a consideram uma mulher perigosa por suas ideias revolucionárias, e a levam para a guilhotina. Olympe de Gouges conseguiu aprovação da Assembleia Nacional Francesa.Embora estas e outras autoras já reivindicassem seus direitos no século XVIII, o nome feminismo só seria criado na década de 1840, na França, quando cresceram movimentos organizados para reivindicar modificações na legislação. Nos Estados Unidos, o surgimento do feminismo está atrelado ao movimento abolicionista, tendo como principais representantes Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony. Em 1848, as duas publicaram um manifesto denunciando a degradação feminina pela sociedade patriarcal, que usurpou das mulheres o direito à educação, à liberdade financeira e à esfera pública.As integrantes dessa “primeira onda” do feminismo no século XIX tinham como objetivo criar novas formas de identidade feminina. A maioria das ativistas acreditava que a mudança social deveria começar dentro do lar: as mães podariam em seus filhos os preconceitos de gênero e em suas filhas a antiga concepção do feminino. O intuito era fazer nascer o que a escritora sul-africana Olive Schreiner chamou de “nova mulher”, aquela que recusaria a passividade imposta pela sociedade, quebrando mitos culturais. Em seu livro Mulher e Trabalho (1911), Schreiner denuncia o parasitismo daquelas que enxergam o casamento como único objetivo de vida e fonte de renda. Para a autora, isto seria uma maneira de transformar a união formal do casal em uma espécie de prostituição legalizada. Com a “nova mulher”, a relação matrimonial passaria por profundas mudanças: surgiria o “novo homem” e uma relação baseada no companheirismo, na qual os dois dividiriam os trabalhos domésticos e as contas. Esta era uma das preocupações do feminismo: mostrar que não se tratava de um ideal de reversão, no qual os homens passariam a ser subalternos, mas sim um veículo que levaria as mulheres a fazerem seu trajeto ao lado deles.Algumas brasileiras entraram em contato com esses ideais. Nascida no Rio Grande do Norte em 1810, Nísia Floresta é considerada a pioneira do feminismo no Brasil. Depois de ficar viúva, a escritora mudou-se para o Rio Grande do Sul com o intuito de fundar uma escola de moças. De lá, partiu para o Rio de Janeiro, onde, além de se dedicar à educação feminina, escreveu artigos em jornais defendendo a emancipação da mulher. Em 1849, muda-se para Paris, entrando em contato com diversos intelectuais da época, e publica na França uma coletânea de artigos feministas, Opúsculo Humanitário (1853). Através de Nísia, a consciência política e o desejo de liberdade foram despertados em várias mulheres das classes alta e média brasileira.O feminismo no Brasil do século XIX e início do século XX não se configurou, porém, como um movimento propriamente dito, mas sim através de vozes espalhadas pelo país, com dificuldades de comunicação. Ao contrário das feministas americanas, inglesas e argentinas, as brasileiras não se reuniam em associações para estudar e divulgar a causa. Parte do problema se devia a heranças históricas: a sociedade ainda guardava resquícios da severidade imposta pela Igreja para regular o corpo feminino. E as feministas chegavam com ideias de emancipação do prazer da mulher. Pregava-se que a mulher teria liberdade para usar o seu corpo como o homem. Algumas já falavam em maneiras de burlar a natureza para evitar uma gravidez acidental. A solução encontrada pelas feministas foi a publicação de jornais dedicados à causa. Assim, na segunda metade do século XIX, começaram a circular pelo país periódicos como A Família e A mensageira, que abriram espaço para a mulher se dedicar à literatura e reivindicar o direito de participar da vida política.
A luta ficou mais acirrada com a Proclamação da República, em 1889: elas acreditavam que a mudança do regime ampliaria seus direitos como cidadãs, podendo votar, mas isso não ocorreu. O desapontamento impulsionou a criação, em 1919, da Liga pelo Progresso Feminino, dirigida pela anarquista Maria Lacerda de Moura, que mais tarde passaria a se chamar Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. O grupo ganha reforço importante em 1922, quando a feminista Bertha Lutz volta dos Estados Unidos após participar da Conferência Pan-Americana de Mulheres. As feministas aumentam a pressão por sua emancipação política e, finalmente, em 1932, o presidente Getulio Vargas concede às brasileiras o direito de exercer sua cidadania através do voto. Dois anos depois, algumas mulheres conseguem se eleger para a Assembleia Nacional Constituinte, iniciando um trabalho voltado para a educação e a profissionalização das brasileiras. Em 1936, Bertha Lutz é eleita deputada federal pelo estado do Rio de Janeiro.No Congresso, Lutz propôs o Estatuto da Mulher e a criação do Departamento Nacional da Mulher. As iniciativas foram rejeitadas por feministas como a deputada pelo estado de São Paulo, Carlota Pereira de Queirós, com o argumento de que os projetos cristalizariam a posição das mulheres como sujeitos marginalizados. O caminho, acreditavam, seria equiparar a mulher ao homem. Diante disso, Lutz fez novas proposições, como o impedimento da diferença salarial baseada no estado civil e no sexo.À medida que avançava, a luta feminista ganhava desafetos. Jornais publicavam textos afirmando que o feminismo era uma extravagância. Muitos acreditavam que a igualdade de direitos culminaria na desordem do lar, pois a esposa não se dedicaria mais exclusivamente aos filhos e aos afazeres domésticos. Outros criaram o estereótipo, ainda hoje reproduzido, de que feministas seriam frígidas, mal amadas, solteironas, histéricas.Atualmente, o feminismo é um movimento mais aberto à diversidade, articulado com as bandeiras de outros grupos minoritários, como negras, índias e lésbicas. Abarca inclusive a ideia, pregada por Judith Butler, de que enquanto pensarmos a partir dos gêneros, estaremos falindo como sociedade.Karine Rocha é professora de Letras da Universidade Federal de Pernambuco e autora de “Alfonsina Storni, uma flaneuse nas ruas de Buenos Aires”. Revista Intertexto (UFMT, 2008). Disponível em http://www.uftm.edu.br/revistaeletronica/index.php/ intertexto/article/view/77Saiba Mais:PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). Revista Brasileira de História, São Paulo, Anpuh, n.52, vol. 26, 2006. p. 249-272.PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
Sementes da revolução
Karine Rocha