Aquém do horror

Bruno Garcia

  • Propaganda americana de guerra, de 1942. (Imagem: Reprodução)As tropas japonesas já haviam massacrado milhões de civis chineses. A Alemanha nazista ocupava Luxemburgo, Bélgica, Holanda e França, numa prova brutal do seu apetite e eficácia militar. Em toda a Europa ocidental apenas a Inglaterra resistia ao avanço germânico. A guerra entrava em um dos seus momentos mais delicados, com a escalada dos combates aéreos e o crescimento do conflito na África. Começava o ano de 1941 e os Estados Unidos assistiam a tudo à distância. Isolados e impassíveis.
     
    Não havia novidade nessa atitude. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, os americanos se retiraram do cenário internacional, cumprindo à risca a lendária recomendação feita por George Washington, para que permanecessem distantes dos problemas europeus. O país não apenas ficou de fora da Liga das Nações como assinou em 1935 o Ato de Neutralidade, que o impedia de participar de qualquer conflito. Segundo o presidente Franklin Roosevelt, ninguém deveria criar “qualquer expectativa de que os Estados Unidos voltariam a enviar tropas, navios de guerra, munição ou dinheiro para a Europa”. No meio dos anos 1930, a grande preocupação ainda era a recuperação econômica do país, que afundara numa enorme crise em 1929. Hitler, bem como o fascismo de um modo geral, parecia ser, aos olhos americanos, um problema europeu. 
     
    Mas naquele janeiro de 1941 Roosevelt parece ter mudado de ideia. As palavras que dirigiu à nação no State of Union, tradicional discurso realizado pelo presidente norte-americano no começo de cada ano, ainda não colocavam em ação o exército de seu país, mas marcaram o início do envolvimento dos Estados Unidos com o conflito e estabeleceram, em linhas gerais, os motivos daquela guerra. “Almejamos um mundo fundado em quatro liberdades humanas essenciais. A primeira é a liberdade de expressão – em todos os lugares do mundo. A segunda é a liberdade de toda pessoa adorar deus à sua própria maneira – em todos os lugares do mundo. A terceira é a liberdade de viver sem passar necessidade (...) em todos os lugares do mundo. A quarta é a liberdade de viver sem medo (...) em todos os lugares do mundo”. 
     
    De um ponto de vista pragmático, o discurso, que ficaria conhecido pelo título de “As quatro liberdades”, significou a quebra do ato de neutralidade, já que tanto o financiamento quanto o envio de navios de guerra para os britânicos foram aprovados quase imediatamente. Ainda mais significativo, porém, foi o recurso retórico utilizado. Ao justificar a guerra como uma defesa de liberdades de caráter universal, Roosevelt não apenas se afasta da postura isolacionista e reconhece a amplitude daquela luta, como coloca em cena, pela primeira vez no período, o discurso dos direitos humanos. 
     
    Família alemã pobre na década de 1920. (Foto Roger Viollet / Getty Images)A expressão em si era relativamente recente na língua inglesa. Ela passa a aparecer com maior frequência à medida que a guerra se prolonga. Roosevelt a menciona de forma tímida quando se diz convencido “de que a completa vitória sobre os inimigos é essencial para defender a vida, a liberdade, a independência e a liberdade de religião e para preservar os direitos humanos e a justiça”. O que o presidente e seus contemporâneos entendiam por direitos humanos ainda não estava completamente claro. Nas quatro liberdades proclamadas como dignas de defesa é possível reconhecer certa origem em comum: o discurso ilustrado do século XVIII. Esse vocabulário remete à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França revolucionária. A defesa da liberdade de expressão, da liberdade religiosa e mesmo a de viver sem medo se encontra em certa medida contemplada no documento de 1789 e também na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e em sua Constituição (1787). 
     
    A grande novidade no discurso da década de 40 é a inclusão de uma forma de cidadania pautada em critérios mínimos de subsistência. Parece uma ideia razoável, especialmente se consideramos o contexto da enorme crise que o mundo passou a partir de 1929. A desaceleração da economia, o desemprego e a superinflação viraram um fenômeno internacional. Para sanar o problema nos Estados Unidos, Roosevelt implementou o New Deal, política de pleno emprego com ênfase na intervenção estatal na economia. É possível que por trás da virada da política isolacionista norte-americana no discurso de 1941 estivesse a percepção de que foram exatamente essas condições que permitiram a emergência do fascismo europeu e, consequentemente, a eclosão da guerra. 
     
    Ainda que inúmeras tragédias humanitárias se repetissem ao longo dos anos de batalha, a expressão “direitos humanos” na década de 40 só é encontrada quando associada a essa perspectiva de bem-estar social. Naquele período ninguém pensava nesses direitos como princípio ou molde para uma lei internacional. Eles diziam respeito a direitos privados e econômicos. Isto fica ainda mais claro em 1944 quando, mais uma vez, por ocasião do State of Union, Roosevelt volta ao tema. Dessa vez, o presidente fala da necessidade de se criar uma segunda Carta de Direitos (Bill of Rights). A primeira, referente às dez primeiras emendas à Constituição, dizia respeito às garantias dos direitos políticos. Diante das dramáticas circunstâncias dos conflitos, Roosevelt concluiu que era necessário uma nova forma de cidadania, algo que pudesse garantir, efetivamente, a igualdade na “busca pela felicidade”  A ideia era propor uma lista de direitos que incluíssem emprego, alimentação, roupa, lazer, moradia, tratamento médico, segurança social e educação, em suma, aquilo que ficaria conhecido posteriormente como “estado de bem-estar social”. 
     
    Florence Thompson, mãe de sete filhos, fotografada nos EUA na década de 1930. É possível que a política externa norte-americana na década de 1940 tenha relação com as causas profundas da Segunda Guerra. (Imagem: BIBLIOTECA DO CONGRESSO AMERICANO, WASHINGTON – ESTADOS UNIDOS)É em tal contexto que a expressão direitos humanos ganha relevância nesse cenário. Em outras palavras, os direitos mencionados na década de 40 falavam da guerra, sim, mas não do holocausto ou do massacre sucessivo de populações civis. Eles estavam vinculados a um diagnóstico, a uma interpretação das condições econômicas e sociais que permitiram a ascensão do nazismo. Não surpreende que todos os Estados, em maior ou menor grau, concordassem com a necessidade da implementação de políticas de bem-estar social. 
     
    A ideia de que tenha sido o holocausto a principal causa do crescimento do interesse pelos direitos humanos parece, portanto, equivocada. Essa associação só será feita muito mais tarde. As iniciativas surgidas do imediato pós-guerra visavam, por outro lado, ao controle da violência e ao estabelecimento de uma nova ordem internacional, mas não envolviam os direitos humanos. A Organização das Nações Unidas (ONU) nasce em 1945 com o objetivo de manter a paz e promover a cooperação para a resolução conjunta de problemas internacionais. Ela herda o nome pelo qual Roosevelt chamava os aliados. Em 1942, a Declaração das Nações Unidas já estabelecia objetivos em comum entre os países que lutavam contra o fascismo europeu e o imperialismo japonês, bem como uma visão de como deveria ser o mundo após a guerra. Entre seus primeiros gestos estava a criação de uma comissão dedicada à redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que seria assinada em 1948. Contudo, o documento permanece ligado à visão de bem-estar social. Em nenhum momento o holocausto ou o destino dos judeus é mencionado. 
     
    O que acontecera com os judeus no período ainda não estava claro ou difundido o suficiente. O antissemitismo nazista era bem conhecido, mas não se tinha a completa dimensão dos campos de extermínio. Isso ganharia relevo na década seguinte e o Holocausto, enquanto substantivo próprio, só receberia essa carga semântica nos anos 60. Muito pouco foi dito sobre os judeus nos Julgamentos de Nuremberg, quando as principais lideranças políticas e militares nazistas responderam por seus crimes de guerra e contra a humanidade. Em nenhum momento a expressão direitos humanos foi utilizada. Em outubro de 1946, quando as sentenças foram executadas, todos os países contabilizavam seus mortos e suas cidades destruídas, mas pouco se sabia da organização sistemática para o homicídio em massa de um povo. A Convenção para Prevenção e Punição de Crime de Genocídio, em seu documento fundador, de 1948, conseguiu a condenação unânime do crime sem mencionar uma única vez o termo direitos humanos. 
     
    Por outro lado, os direitos econômicos e suas conquistas pelo estado de bem-estar nunca estiveram tão em voga. Em nome dessa nova forma de cidadania, e do seu papel para a manutenção da paz, os Estados Unidos promoveram o Plano Marshall, um robusto projeto de recuperação econômica para a Europa e o Japão, patrocinando ostensivamente a reconstrução dos Estados. Foi a atenção a essa forma particular de cidadania que garantiu a circulação dos direitos humanos como uma ideia relevante depois do conflito. Winston Churchill talvez tenha sido vítima de não compreender esse contexto. O status de herói de guerra não impediu que ele perdesse as eleições em 1945 para os socialistas do Partido Trabalhista que, entre suas bandeiras, tinham as políticas de pleno emprego e a criação do Serviço de Saúde Nacional. 
     
    Não há dúvida de que os direitos saíram ampliados e fortalecidos da Segunda Guerra Mundial. Mas ainda não eram humanos e universais. Eram nacionais. 
     
    Bruno Garcia é colaborador correspondente da Revista de História da Biblioteca Nacional e autor da dissertação “Cuba and Human Rights: Between US and EU support and pressure” (Masarykova Univerzita, República Tcheca, 2009).
     
    Saiba mais
     
    BRINKLEY, Alan. Franklin Delano Roosevelt: O presidente que tirou os Estados Unidos do Buraco.  São Paulo: Editora Amarilys, 2010.
    MOYN, Samuel. The last utopia: Human Rights in History. Cambridge: Harvard University Presse, 2010.