- “O mestre do terror contra os traiçoeiros agentes japoneses”, anunciava a publicidade do filme Perigo amarelo, estrelando Bela Lugosi, nos cinemas de São Paulo. Em dezembro de 1944, poucas semanas depois de entrar em cartaz, o filme recebeu do Correio Paulistano uma crítica que nada tinha a ver com seus atributos artísticos. Segundo o jornal, a cidade estava se defrontando pela primeira vez com o “torpedeiro suicida da armada japonesa”.Mas quem era exatamente essa figura? Um personagem de filme, de crônica de jornal, uma ameaça suposta ou real da Segunda Guerra que alcançara o Brasil e São Paulo? No Pacífico seguiam as batalhas dramáticas entre os exércitos norte-americano e japonês. O torpedeiro era um personagem daquele Extremo Oriente, mas o termo também designava um novo tipo urbano que surgia nas ruas centrais de São Paulo: a figura do pingente, que viajava pendurado no balaústre do bonde devido à superlotação, ou seja, uma assustadora imagem de guerra foi associada à situação do transporte público na cidade.O cotidiano paulistano estava entrelaçado à Guerra Mundial. Tanto por influência das imagens dramáticas que circulavam nos jornais e eram citadas nas conversas, como por um impacto mais objetivo: a escassez de diversos produtos essenciais. Foi a falta de combustíveis que fez diminuir a circulação de automóveis, caminhões e ônibus, ocasionando o aparecimento dos “torpedeiros” nos bondes lotados. A crise dos combustíveis serviu de álibi para os empresários reduzirem a frota, os trajetos percorridos e os locais atendidos e, com isso, aumentarem a margem de lucro.Mas o espírito geral parecia o de esforço coletivo. Especialmente entre 1942 e 1944, enquanto os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) enfrentavam o exército nazista nos campos de batalha no norte da Itália, a população de São Paulo integrava o front da guerra interno e civil. Para compensar a falta de combustível, diversas oficinas montaram gasogênios – equipamentos acoplados aos veículos para que se movessem a lenha. A falta de farinha de trigo fez surgir o pão à base farinha de milho – vendido nas padarias como “pão de guerra”, denotando a adesão do front civil às contingências do momento. No discurso oficial, leite e vitaminas tornaram-se fatores vitais na defesa nacional. Crianças eram estimuladas a plantar uma “horta da vitória”. As lojas vendiam um sapato popular, mais barato, apelidado de “coordenação” – em referência à Coordenação de Mobilização Econômica, órgão federal e estadual criado para centralizar a economia de guerra.A guerra estava no discurso oficial, na conversa de bar e na poesia, no cinema e nas artes plásticas, nas fábricas e nas filas do ônibus. Eram populares entre os paulistanos as letras de sambas cariocas, tanto aqueles que louvavam o engajamento militar quanto os que ironizavam a mobilização do Estado Novo, regime autoritário liderado por Getulio Vargas (1937-1945). Nos cinemas eram exibidos filmes de guerra norte-americanos e cinejornais com propagandas e notícias. As rádios transmitiam programas como o Repórter Esso. Circulavam gibis com super-heróis, como o Capitão América, e até as crianças eram mobilizadas para campanhas que arrecadavam cigarros para serem enviados aos soldados da FEB, como símbolo do apreço popular pelos pracinhas. Enviado pelo governo dos Estados Unidos, Walt Disney lançou o personagem Zé Carioca para integrar o Brasil ao esforço dos Aliados. Os meios de comunicação de massa já interligavam o mundo, e a adesão à causa dos Aliados implicou a massificação da cultura norte-americana por aqui.Campanhas em torno da guerra deixavam a população em alerta. Exercícios de black-out (escurecimento) eram realizados à noite diante do suposto risco de ataques aéreos (que, de fato, nunca existiu). Exposições foram organizadas e manuais editados para ensinar como reagir e detalhar as providências que seriam tomadas em caso de bombardeio iminente. Uma dessas publicações imaginava que moças voluntárias e uniformizadas da Defesa Civil percorreriam a cidade à tarde com flashlights na mão, enquanto tocariam sirenes e se apagariam as luzes das casas e a iluminação pública, extinguindo-se até os faróis de carro – com a cidade silenciosa, só seria possível ouvir os ruídos dos aviões fiscalizando o cumprimento do exercício de black-out.A indistinção entre o front militar e o front civil, com a mobilização da população e da economia, começou com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). As batalhas deixaram de ser circunscritas aos exércitos. Todas as pessoas tornavam-se potenciais combatentes, no campo de batalha ou na cidade. Em São Paulo operários industriais tornaram-se “soldados da produção” e, logo após a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, alguns direitos trabalhistas foram restringidos em nome das necessidades da produção de guerra. Uma campanha convocou as mulheres a se tornarem enfermeiras socorristas da Defesa Civil e da FEB, construindo a poderosa imagem de “mães da pátria”, que cuidam e protegem os filhos homens que se sacrificam na guerra. Em 1942, Maria Esolina Pinheiro, professora da Escola da Cruz Vermelha, detalhou um plano (nunca executado) de criar um Corpo de Enfermeiras Auxiliares, composto de 100 mil mulheres treinadas para auxiliar as enfermeiras profissionais, além de um Corpo de Enfermeiras Domésticas, com 500 mil mulheres preparadas para resolver emergências nos lares. Também houve campanhas para escrever cartas aos combatentes e costurar meias e roupas de lã para enviar aos soldados no inverno italiano.Desde 1938, o Estado Novo restringia o ensino e a publicação de jornais e livros em línguas que não o português, e em 1944 ocorreu uma campanha racista que levou à expulsão de imigrantes nipo-brasileiros do litoral paulista e das regiões centrais da capital. No caso dos imigrantes italianos e alemães, também de nações inimigas na guerra, na capital as restrições foram mínimas.Getulio Vargas se valeu da guerra e do envio da FEB para criar políticas de mobilização que, sob o pretexto do conflito, controlavam a população e a alinhavam aos desígnios da ditadura. Os sindicatos livres de trabalhadores já haviam sido banidos desde 1930 e, com a guerra e as restrições à CLT, recrudesceu a repressão aos movimentos operários.Monumentos, nomes de lugares e de edifícios, feriados, músicas populares, romances e diários são algumas das formas pelas quais um acontecimento fica marcado na memória coletiva. Passados 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, sua lembrança na cidade de São Paulo é hoje rarefeita, quase ausente do cotidiano. Basta compará-la à memória da Revolução de 1932, celebrada em um obelisco e nos nomes de alguns dos principais prédios, avenidas, ruas e túneis da cidade, além de homenageada por um feriado, o dia 9 de julho.A guerra não deixou um ponto de referência na cidade, uma marca coletiva ou geracional, uma história daquelas que avós contam aos netos, uma celebração comum por ter vivenciado um dos episódios centrais do século XX, provavelmente o mais importante, se pensarmos no impacto social que a guerra teve e no ineditismo do genocídio nazista contra judeus, ciganos e outros povos. A memória é presente para militares que celebram a FEB, para a comunidade nipo-brasileira, que lembra sua brutal exclusão, para a comunidade judaica, que lembra o Holocausto na Europa. A memória da guerra não precisa se confundir com a celebração de algum militarismo, muito menos com a ditadura do Estado Novo e as políticas autoritárias de Getulio Vargas. Uma celebração que apontasse para a reafirmação do respeito à democracia, aos direitos humanos e à importância das políticas sociais faria jus à memória da Segunda Guerra Mundial.
Roney Cytrynowicz é historiador e autor de Guerra sem guerra: A mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp, 2000).
Saiba maisBONALUME NETO, Ricardo. A Nossa Segunda Guerra: Os Brasileiros em Combate 1942-1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.HANDA, Tomoo. O Imigrante Japonês: História de sua Vida no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987.MOURA, Murilo Marcondes de. Três Poetas Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial (Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes). Tese de doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada, FFLCH-USP, 1998.TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
O front é aqui
Roney Cytrynowicz