Terminada a Segunda Guerra Mundial, os julgamentos de nazistas e colaboracionistas multiplicaram-se por toda a Europa. O mais famoso deles foi o chamado Tribunal de Nuremberg. Os esforços para se fazer justiça, porém, não impediram muitos desses criminosos de escapar. Alguns contaram com a própria sorte e recursos, enquanto outros receberam apoio de redes que envolviam a Cruz Vermelha, contatos governamentais no exterior e setores da Igreja Católica. Fora do continente, encontra-ram vários destinos para se refugiarem: da Síria ao Canadá, dos Estados Unidos à Argentina. O Brasil também fez parte desta lista nada lisonjeira.
Em nosso país, cinco casos merecem destaque. O primeiro ocorreu em 1950. Em junho daquele ano, o imigrante letão Herberts Cukurs, famoso por instalar os “pedalinhos” na Lagoa Rodrigo de Freitas, foi denunciado pela Federação das So-ciedades Israelitas do Rio de Janeiro como responsável pela morte de aproximada-mente 30 mil judeus durante a ocupação nazista da Letônia. Cukurs negou qualquer participação nos assassinatos, embora admitindo ter colaborado com os nazistas. Não convenceu as comunidades judaicas carioca e paulista: com o apoio de amplos setores da imprensa, elas passaram a exigir que o letão fosse expulso do país. A contenda durou aproximadamente 15 anos. O governo brasileiro investigou a vida pregressa de Cukurs, mas como ele não havia sido condenado por qualquer tribunal internacional, e como não conseguiram informações consideradas conclusivas, as autoridades nacio-nais encontraram uma decisão “neutra”: não expulsaram o imigrante, mas também não lhe concederam a naturalização que vinha solicitando desde sua chegada ao país. Em 1965, Cukurs foi assassinado por agentes do serviço secreto israelense, o Mossad, durante uma viagem a Montevidéu, no Uruguai.O segundo grande caso de nazistas refugiados no Brasil envolveu Jacques Charles Noel Dugé de Bernonville. O “Conde de Bernoville” havia sido um típico colaboracionista francês: integrante da “Milícia Francesa”, combateu partisans e par-ticipou de ações antissemitas na França ocupada. Católico tradicional e monarquista fervoroso, no imediato pós-guerra ele passou por Espanha, Estados Unidos e Canadá, até chegar ao Rio de Janeiro, em 1951. Àquela altura, Bernonville era mais do que um suspeito: já tinha sido julgado e condenado à morte duas vezes na França, à revelia.No Rio, Bernonville teve o paradeiro revelado por repórteres do jornal Última Hora: estava morando no Mosteiro de Santo Antônio, no centro da cidade, e teria relações com membros da família real brasileira. A descoberta fez tanto barulho que o francês precisou de escolta da polícia para sair de casa. A justiça francesa de-mandou sua extradição, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) não deferiu o pedido, uma vez que a legislação vigente não permitia extradição por crime político nem para países que adotam como punição a pena de morte. Em 1972, foi encontrado morto dentro de seu apartamento. Até hoje não se sabe quem foi o autor da execução nem as exatas circunstâncias em que se deu o crime.O terceiro caso é o de Franz Stangl. Nascido na Áustria em 1908, ele foi superintendente do programa de eutanásia de Hitler, o Aktion T4, e um dos comandan-tes dos campos de extermínio de Treblinka e de Sobibor, na Polônia. Após a guerra, Stangl foi detido pelo exército americano e enviado para um campo de prisioneiros de guerra na Áustria. Em 1947, contudo, conseguiu escapar. Saiu da Europa via Roma, em direção à Síria, onde permaneceu até 1951, quando finalmente emigrou para o Bra-sil. Em maio de 1967 foi preso pela polícia. Três países solicitaram sua extradição: Alemanha Ocidental, Áustria e Polônia. O STF deferiu os pedidos da Alemanha e da Áustria, que se comprometeram com a comutação da pena de prisão perpétua em temporária, para adequar-se à legislação brasileira. Stangl foi extraditado e morreu de causas naturais, em 1971, numa prisão na Alemanha.O quarto caso tem Gustav Wagner como protagonista. Nascido na Áustria em 1911, ele foi subordinado direto de Stangl, subcomandante do campo de Sobibor e participante do Aktion T4. Detido em maio de 1978 no Distrito de Campo Belo, em São Paulo, teve sua extradição requisitada por quatro países: Áustria, Polônia, Israel e Alemanha Ocidental. Diferentemente do ocorrido com o antigo chefe, o STF indeferiu a extradição de Wagner. No caso do pedido israelense, o Supremo alegou que o Esta-do de Israel não existia na época dos crimes, carecendo, assim, de competência para fazer o julgamento. Em relação aos requerimentos da Áustria, da Polônia e da Alema-nha, devido à maneira como os processos foram montados, o tribunal avaliou que os crimes praticados por Wagner haviam prescrito. Ele foi libertado e suicidou-se dois anos depois, em 1980.
Talvez o caso mais notório seja o do alemão Josef Mengele, um dos médi-cos no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, onde realizou experiências biológicas terríveis com os prisioneiros. Sua captura, nos anos 1980, valia uma gene-rosa recompensa de pouco mais de 2 milhões de dólares, oferecida pelo Centro Simom Wiesenthal. Em junho de 1985, depois de muito se especular sobre passagens por Paraguai, Argentina e Brasil, o corpo de Mengele foi localizado no cemitério do Rosário, em Embu das Artes, no interior de São Paulo. Ele fora enterrado sob o nome falso de Wolfgang Gerhard. Segundo investigações, o “médico-monstro” de Aus-chwitz morrera em fevereiro de 1979, vítima de um afogamento em Bertioga, litoral paulista.O Brasil foi um “paraíso” para criminosos nazistas? Durante muito tempo, a imprensa e a cultura de massa (da literatura ao cinema) difundiram a ideia de que a massiva conivência das autoridades brasileiras e a livre atuação de redes subterrâneas de auxílio teriam atraído muitos nazistas foragidos para o país, onde poderiam atuar livremente. Os casos relatados parecem sinalizar, contudo, que a resposta pode não ser assim tão simples. O governo brasileiro indeferiu os pedidos de naturalização de Cukurs, mesmo que ele nunca tenha sido condenado por qualquer tribunal. Franz Stangl foi extraditado em um processo extremamente rápido, considerado histórico pelo STF. E as decisões sobre Wagner e Bernonville, embora tenham negado os pedi-dos de extradição, tiveram caráter jurídico legal. Esses elementos nos levam à neces-sidade de analisar caso a caso, de forma a evitar leituras especulativas, generalizadas ou mitológicas sobre o assunto, que apenas muito recentemente começou a receber a atenção dos nossos historiadores.Entre 1997 e 2005, a Comissão para o Esclarecimento das Atividades do Nazismo na República Argentina (Ceana) avançou no tema ao mapear centenas de nazistas e colaboracionistas que imigraram para aquele país, embora sua metodologia tenha dividido opiniões. No Brasil, ainda não se sabe ao certo a quantidade de nazistas que viveram aqui, se a entrada e a permanência desses indivíduos obedeceram ou não a um padrão, nem qual foi o papel de nossas representações diplomáticas no exterior, no imediato pós-guerra, diante de tais criminosos. Até que essa historiografia se desenvolva, é preciso desconfiar de afirmações peremptórias.Nada nos impede de apreciar filmes e romances fantásticos sobre conspi-rações internacionais envolvendo governos inescrupulosos e redes secretas formadas por antigos membros da SS. Mas é preciso estar consciente dos possíveis limites dessa interpretação.Bruno Leal é coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro e fundador e editor da rede social Café História.Saiba MaisKLICH, Ignacio & BUCHRUCKER, Cristian. Argentina y La Europa del Nazismo. Sus secuelas. Buenos Aires: Siglo XX Editora Iberoamericana, 2009.SERENY, Gitta. No mundo das trevas: o inferno de Treblinka e o seu carrasco. Lis-boa: Ancora Editora, 2000.SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé. El Mossad y La Ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay. Montevideo: Carlos Álvarez, Editor, 2010.STEINACHER, Gerald. Nazis on the Run – How Hitler’s Henchmen Fled Justice. New York: Oxford University Press, 2011.
Paraíso duvidoso
Bruno Leal