Quando os regimes fascistas ou similares passaram a se instalar em diversos pontos da Europa, quase imediatamente deram origem ao fenômeno da resistência – tão multifacetado quanto eram diversos os países, as regiões e os momentos em que ocorreu.
Em 1922, na Itália, tão logo os fascistas tomaram o poder, surgiu uma forte e difusa “resistência antifascista”. Desde então, esta expressão assumiu um pleno significado político. Outros governos autoritários, fascistas ou fascistizantes viriam na sequência – como o Estado Novo em Portugal a partir de 1932 e o Terceiro Reich na Alemanha a partir de 1933 – e a noção de resistência antifascista transformou-se em militância política e numa identificação de grupos diversos, na maioria das vezes republicanos, de alguma vertente de esquerda, liberais radicais e antiautoritários.Caberia à Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 1939, definir o campo do antifascismo na Europa e no mundo. O conflito opôs a República, e seus apoiadores anarquistas e comunistas, a um levante de combatentes direitistas, apoiados pela Itália e pela Alemanha fascistas. A participação das chamadas “Brigadas Internacionais” – quase sempre formadas por homens de alguma coloração esquerdista – mostra a existência de uma resistência antifascista internacional, constituída em vertente política.A eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1º de setembro de 1939, transformou esse antifascismo político em resistência armada em vários países. Em outros, o que houve foi um sentimento difuso, que se fez sentir em pequenos círculos ou mesmo individualmente. Na Polônia, primeiro alvo da fúria nazista, destruído o aparelho estatal preexistente, não houve a menor chance para uma resistência armada permanente e sistemática. Organizados no exílio, em Londres (e depois em Moscou), poloneses constituíram unidades militares e voluntários individuais, na maioria oriundos das Forças Armadas nacionais, que lutariam na França e na Itália em nome de uma “resistência armada”. Os tchecos antifascistas também tiveram que agir a partir de Londres, enfrentando dificuldades e dúvidas terríveis. Após o assassinato do chefe da repressão nazista, Reinhard Heydrich, em Praga, em 1942, sofreram tremendas represálias pela morte do “açougueiro de Hitler”, como a destruição das aldeias de Lídice e Lezhaky.Países pequenos como Dinamarca, Luxemburgo e Grécia eram altamente vulneráveis às ações nazistas. Seus governos, herdeiros daqueles que foram derrotados e depostos pelas tropas de Hitler, procuraram formas de convivência com os ocupantes, sem colaboração ativa – eram por isso chamados de “realistas”. Tal coexistência tornava-se penosa, culminando em rompimentos e em punições coletivas aplicadas à população civil. Na maior parte das vezes, o conflito tinha origem na deportação de judeus “nacionais” (e poucas vezes de ciganos), no pagamento de dívidas ou no arresto de bens e tesouros nacionais, na entrega de jovens para serviços na Alemanha – em especial o temido STO, “serviço de trabalho obrigatório”, que levou milhares de homens e mulheres de toda a Europa para trabalhar nas fábricas e no campo alemão. A maioria desses “voluntários”, em especial os poloneses e os russos, na verdade, vivia um estatuto de trabalho escravo. Pequenas infrações, ou relações mais próximas com alemães eram punidas com a morte.
Na França, na Croácia (arrancada da Iugoslávia) e na Noruega, emergiram governos prontos para a “colaboração” com o ocupante nazista. Sob o governo do marechal Philippe Pétain, com a assinatura do armistício de 22 de junho de 1940, a França buscaria se reorganizar, obter a soltura dos prisioneiros de guerra e, acima de tudo, desempenhar um papel de monta na nova Europa que seria criada pela vitória de Hitler – vista, naquele momento, como inevitável. O chamado “Regime de Vichy” (o governo fora deslocado para esta cidade, pois Paris estava sob ocupação) era mais que uma expectativa de poupar os franceses de um duríssimo tratamento por parte dos vencedores: ele colocou em prática uma chamada “Revolução Nacional”, visando à restauração de uma França católica, de fortes raízes agrárias e de um sistema de colaboração entre trabalhadores e industriais, “superando” a dividida França dos partidos, sindicatos e das lutas sociais. Entusiasticamente apoiada pelos partidos de direita, pelas forças fascistas francesas e pelo clero integrista católico, a própria “Revolução Nacional” era uma forma de regime fascistizante. Vichy e seus homens foram além da tentativa de reabilitar a França: ofereceram colaboração “sincera” a Hitler.No pós-guerra, a necessidade de unir a nação e fechar as feridas abertas deu força ao mito de que toda a França foi combatente e antifascista. Mas na verdade amplos setores do país – em especial lideranças industriais e intelectuais e celebridades como Coco Chanel, Le Corbusier e Maurice Chevalier – buscaram, na esteira do pedido do marechal Pétain, formas de conviver bem com os nazistas, o que significava colaborar com eles. Outros, como Jean Renoir, Albert Camus, Marc Bloch e Jean Gabin, assumiram o claro risco de passar para a resistência, fosse na luta armada, ou no exterior.Sediada em Londres, a entidade “França Livre”, liderada pelo então coronel Charles De Gaulle, tentou manter uma “França Combatente” e forças internas em atividade – num amálgama de comunistas, socialistas, nacionalistas e liberais, em ações de “resistência” armada e conexões com os serviços de inteligência ingleses. No início de 1944, cerca de 200 mil pessoas – em média 25% de mulheres – participaram diretamente de atos de combate contra os ocupantes, com o apoio de outras 500 mil pessoas. Sessenta mil acabaram deportados para a Alemanha por resistência antifascista, e nunca regressaram. Outros 30 mil foram fuzilados. Grande parte era comunista, o que valeu ao partido a denominação de “partido dos fuzilados”.Os regimes de colaboração com o nazismo que emergiram na Croácia e na Noruega tinham colorido fascista e relativo apoio popular (forte na Croácia, muito frágil na Noruega). Assim como na França, os comunistas, junto aos judeus e ciganos, foram os alvos centrais de perseguições, internações em campos de concentração e de extermínio. Eles eram muito ativos, quase dominantes nas diversas “frentes” e “conselhos” antifascistas depois de 22 de julho de 1941, quando Hitler ordenou a invasão da União Soviética. Em alguns países, como a Croácia, minorias nacionais (como os sérvios) e religiosas (como os muçulmanos) foram brutalmente perseguidas pelos governos fascistas locais, lançando sementes de eventos futuros, como os massacres dos anos 1990 na ex-Iugoslávia. Cerca de 800 mil croatas envolveram-se na resistência armada antifascista, que se converteu – como na China e na Grécia – em uma guerra civil dentro da guerra maior.
Foi, contudo, na União Soviética que o fenômeno da resistência alcançou seu ápice e, ao mesmo tempo, seu papel mais relevante do ponto de vista militar. A antiga historiografia soviética defendia a tese de que a primeira grande vitória contra a imponente máquina de guerra nazista, antes mesmo da derrota dos alemães nas portas de Moscou em 1941 ou em Stalingrado em 1943, foi a derrota da expectativa alemã de que a “pátria dos sovietes” desabaria ao primeiro choque com as “panzerdivisionen”, as divisões de tanques nazistas. A firmeza e a obstinação do povo russo no enfrentamento dos invasores nem sempre foram seguidas na Ucrânia, nos países bálticos ou em algumas repúblicas do Cáucaso (como a Chechênia) – o que também resultaria em acertos de contas depois de 1991.Com mais de 20 milhões de mortos – ou seja, 10% de toda sua população – a Rússia sofreu as maiores perdas humanas e materiais da Guerra. Mesmo assim, conseguiu erguer uma força de homens e mulheres, atuando atrás das linhas inimigas, de cerca de 1 milhão de combatentes. A atuação desses “partisans”, como ficaram conhecidos os adeptos da resistência, foi responsável por mais 20 mil trens paralisados, 10 mil locomotivas destruídas e 110 mil vagões colocados fora de uso, além de 12 mil pontes ferroviárias e rodoviárias destruídas. Cerca de 1 milhão e meio de soldados alemães foram neutralizados pelas ações de guerrilheiros russos, criando – para além do fato político e moral – uma realidade militar perturbadora para as tropas invasoras.A reação alemã foi brutal. Na Rússia, na Iugoslávia e depois de 1943 também na Itália – onde Mussolini fundara a República Social – os invasores usaram de terror puro contra as populações civis, na tentativa de paralisar a atuação da resistência. Represálias alemãs, como em Oradour-sur-Glane, na França, e o “Massacre das Fossas Ardeatinas”, em Roma, ambos em 1944, mostram o horror a que os nazistas, em especial as Waffen-SS, podiam chegar. Na Itália, o simples ato de cantar uma canção – como a “Bandiera Rossa” – podia levar a um campo de concentração, o chamado “confinamento”.Enquanto boa parte dos italianos e franceses preferia “esperar” pela “Libertação” – o chamado “atentismo”, do verbo francês attendre (esperar) – no caso russo não havia outro caminho: a batalha imposta pelos nazistas, anunciada havia tempos no Mein Kampf [“Minha Luta”] de Hitler (1925) como uma guerra de extermínio visando à “colonização” dos territórios do leste pela população “ariana”, implicou um engajamento massivo dos russos na resistência. Oito milhões de civis foram mortos nessas operações, e outros 4 milhões deportados para trabalhos escravos na Alemanha.Mesmo os judeus, uma população sem Estado e sem recursos militares, reagiram: seja no levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, ou nas corajosas rebeliões nos campos de Treblinka/Sobibor, no mesmo ano, e Auschwitz/Birkenau, em 1944. No seu conjunto, judeus alemães, franceses, russos, americanos e britânicos participaram, em alto percentual, das tropas aliadas ou de formas moleculares de resistência.Sob as mais ferrenhas formas de opressão e as mais diversas limitações, as resistências aconteceram em toda a Europa. Sem sindicatos nem partidos, operários organizaram greves em Amsterdã, Copenhagen e mesmo no Baden-Wurtemberg, na Alemanha. Mães comuns protestaram por seus filhos e maridos – tanto em Catânia, na Sicília, quanto na Rosenstrasse, em Berlim. Homens e mulheres, sob grave risco, deram abrigo a judeus em Berlim, Amsterdã e Varsóvia. Pais e amigos lutaram por seus filhos gays em Berlim e em Catânia. Na Alemanha, civis “sem armas diante de Hitler” (nas palavras do historiador Jacques Sémelin) opuseram-se de diversas formas ao fascismo, fosse por resistência, dissenso ou desobediência. Os custos pessoais eram tremendos.Se a história da “colaboração”, da frieza e do desinteresse pelo outro é um dos momentos mais duros e tristes da Segunda Guerra Mundial, a história de resistência – seja ela armada ou civil, de massa ou individual – é um dos temas mais humanos dessa batalha.Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro.Saiba MaisBROSZAT, Martin & FROELICH, Eike. Bayern in der NZ-Zeit. Munique: Oldenburg Verlag, 1983 [1977].KERSHAW, Ian. Popular Opinion and Political Dissent in the Third Reich. Bavaria, 1933-1945. Oxford: Oxford University Press, 1983.LERNER, Silvia. A liberdade de escolher morrer. Resistência armada de judeus no Holocausto. Rio de Janeiro: Imprimatur, 2015.ROUSSO, Henri. La collaboration, les noms, les thémes, les lieux. Paris: Éditions MA,1987.SÉMELIN, Jacques. Sans armes face à Hitler. Paris: Payot, 1989.WIEWIORKA, Olivier. Une certaine idée de la Résistence. Paris: Seuil, 1998.
Pela vida dos outros
Francisco Carlos Teixeira da Silva