Modelos errados

Alba Zaluar

  • Onde estava o bom pai de família dos bairros pobresdos anos 1980? E o bom jogador de futebol, o bom sambista, o trabalhador habilidoso e o malandro esperto? Estavam ali, onde sempre estiveram. Mas, a partir desse período, essas figuras masculinas até então valorizadas pareciam ter desaparecido. Todos eles ficaram silenciados ou submetidos ao poder incontestável do bandido armado e montado na grana. Daí que muitos adolescentes, ainda em busca de espelhos para se identificar, ficavam fascinados por quem ostentava todos os atributos do poder que não admite oposição: a arma na cintura e os objetos mais cobiçados do consumismo atual, como o carro do ano, as roupas de grife e o brilho do pó.

    A explicação para esse desastroso empobrecimento da vida social local faz parte de um contexto maior. Nos anos 1980, o Brasil vivia uma das piores crises de sua história. A recessão econômica atingia seu ponto mais alto e o desemprego chegava a índices preocupantes. A economia informal crescia em todos os setores: vendedores de sinal, camelôs, biscateiros, guardadores de automóveis apareciam em número cada vez maior. E o setor mais subterrâneo – por ser ilegal – desta economia desenvolveu-se ainda mais rapidamente: o tráfico de drogas, feito à luz do dia em vários pontos da cidade, em especial em favelas e bairros pobres. Ao mesmo tempo, o salário-mínimo atingia seu ponto mais baixo desde que foi instaurado no governo Vargas.

    O período de transição democrática foi marcado pelas notícias de grandes escândalos e de corrupção no governo, e também pelas que falavam das altas taxas de criminalidade nas áreas pobres da cidade. Na imprensa, as interpretações sobre o crime pendiam ora para o pânico moral, ora para a romantização da figura do traficante armado, apresentado como um bandido social urbano que preenchia, na favela, o vazio deixado por um Estado ausente.

    Mas o fato é que, em primeiro lugar, existia uma guerra em curso no país, na qual pereciam principalmente jovens pobres e negros que estavam se matando entre si. Na Cidade de Deus, conjunto habitacional da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (Cehab), de 1980 a 1991, morreram 722 jovens – de 13 a 25 anos – na guerra entre quadrilhas de traficantes e assaltantes, com algumas intervenções de policiais que agiram quase sempre tomando posição em defesa de uma das quadrilhas às quais estavam aliados. Era uma guerra peculiar: movida pelo enriquecimento rápido e por vingança interpessoal, sem as regras acordadas de um código tradicional da vingança de sangue ou da honra familiar, o que a tornava particularmente feroz, com protagonistas cada vez mais cruéis.

    Em segundo lugar, os laços de lealdade e dependência entre pais e filhos, padrinhos e afilhados, patronos e clientes haviam enfraquecido, sem que fosse compensado pelo aparecimento de um novo mapa para guiar os caminhos dos jovens, o da cidadania. Enquanto eles cresciam, interiorizavam o individualismo, que criava a ilusão de que eram pessoas independentes na sua liberdade de agir, que não deviam satisfação a nada nem a ninguém, ao mesmo tempo em que esperavam obediência inquestionável dos outros. Os chefes ou “cabeças” das quadrilhas eram concebidos como homens inteiramente autônomos e livres. Mas esse exercício era feito à custa da submissão dos seus “teleguiados” e das suas vítimas.

    Com o progressivo domínio das quadrilhas por comandos centrais, os “cabeças” locais passaram a dever lealdade e obediência às determinações de superiores. Era como um poder militar que não tivesse nenhum tipo de controle sobre suas ações arbitrárias, fruto da vontade de alguém que se achava mais poderoso que os demais. Dessa estrutura herdada de décadas anteriores nasceram as ordens que chegaram de dentro das prisões onde estivesse preso o traficante Fernandinho Beira- Mar, para matar desafetos em diversas favelas do Rio a partir de 2002, conforme várias cartas encontradas quando da ocupação do Complexo do Alemão. Da mesma forma, surgiram as ordens dadas pelos chefes da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) durante a rebelião que parou a cidade de São Paulo, quando foram mortos inimigos dentro da prisão e fora dela, em março de 2006.

    Apesar de organizados em quadrilhas, os jovens se sentiam isolados, cercados de inimigos, sempre preocupados com uma possível traição, mesmo daquele que consideravam seu amigo. Havia também uma lógica cultural na qual a busca por prestígio, respeito ou consideração precisava reafirmar-se pelo dinheiro no bolso e pelas armas usadas para demonstrar a disposição de matar, a marca do bandido. E mais: era preciso gastar rapidamente o que se conseguia ganhar facilmente. Nessa exibição de poder e orgia de consumo, o jovem criava mesmo um círculo vicioso, do qual não conseguia sair. Os atos criminosos precisavam ser sempre repetidos para encher continuamente os bolsos. O dinheiro ia embora rapidamente, pela necessária exibição de poder, pelo constante pagamento de parte do butim aos quadrilheiros mais bem armados, ao policial corrupto, ao advogado, e às muitas namoradas. 

    Cada vez mais fora dos espaços sociais da família, da escola e de outras  organizações comunitárias enfraquecidas, os jovens ficaram entregues mais e mais ao mundo da rua, onde imperavam os novos bandidos. Esse processo foi sem dúvida exacerbado porque, com papéis familiares redefinidos, as instituições que deveriam exercer funções antes exclusivas da família não foram capazes de socializar os jovens na rua. Nesse caso, a escola fracassou tanto como agente de socialização quanto como transmissora de instrução. A evasão escolar aumentou muito no período, especialmente nas classes populares. O ensino técnico e profissional continuava longe de atender às demandas das empresas modernas e aos interesses dos jovens.

    Mesmo considerando a importância da mãe como socializadora nas famílias, principalmente no que se refere à moralidade e à valorização do trabalho, o esforço exigido era e é enorme. As mães já reconheciam a rua como o lugar do perigo, da violência e do desencaminhamento de menores, mas se sentiam impotentes.  Sem o apoio de políticas públicas atentas que redefinissem o projeto pedagógico da escola, mães moralizadoras não foram suficientes para enfrentar o domínio do crime organizado que imperava na nova cultura da rua e já invadia a própria escola.

    No entanto, havia claros indícios de que era possível desconstruir a nova cultura da rua. Entre os atraídos pelo poder das quadrilhas, as ilusões do heroísmo bandido iam se desfazendo à medida que amadureciam. Jovens precocemente envelhecidos por decepções e enganos, e que aderiram à carreira criminosa, exibiam dúvidas quanto aos valores e as regras de uma atividade que os fazia enfrentar os inimigos, a guerra, a morte. Eram, já nos anos 1980, personagens trágicos, em conflito com eles próprios, com parceiros, com prováveis vítimas.

    Por outro lado, a polícia vinha tendo atuação confusa, sem que se definisse com clareza seus princípios e limites. Desde o período militar, por força de sua política repressiva acentuada pela política da guerra às drogas, o efeito desta atuação foi o oposto do desejado. Terminava quase sempre na antipedagogia da corrupção e da violência arbitrárias. As narrativas dos jovens envolvidos repetiam que os policiais tomavam-lhes as armas, o produto do roubo, e os soltavam na próxima esquina, após receberem parte do butim.

    A glamourização de bandidos pela imprensa só piorou a tragédia contida nesses processos. Escadinha (1956-2004), um traficante do Morro do Juramento que andava armado, foi um dos mais incensados na imprensa: um rapaz simpático e generoso que ajudava os vizinhos, que comprava remédios para os doentes e prestava outros favores aos necessitados. Nenhuma palavra sobre sua ambição de poder e riqueza, nem sobre a vida dura, cercado de inimigos prontos para abatê-lo. Atraía mulheres para ele, aumentava o seu prestígio e o cegava, impedindo-o de ver os limites de seu poder. Deixou uma esteira de jovens fascinados por essa imagem em toda a cidade, mas morreu cedo. Assassinado com rajadas de tiros de fuzil, usado pelos traficantes da cidade.

    Alba Zaluar é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. (FGV, 2004).