O bom gatuno

Mouzar Benedito

  • Os jornais paulistanos do dia 14 de junho de 1970 traziam uma notícia pequena, mas que surpreendeu muita gente: no dia anterior, Gino Amleto Meneghetti fora preso tentando entrar numa casa da Rua Fradique Coutinho 909, na Vila Madalena. Levava nas mãos uma lanterna, uma talhadeira e um pé de cabra, ferramentas típicas de arrombadores de portas e janelas. Tudo isso seria muito comum se o homem que fora detido não tivesse 92 anos de idade! Liberado por falta de provas, Meneghetti sustentou, com histórias como essa, seu status de figura mitológica da história de São Paulo.

    Gato dos Telhados, Ladrão Nobre, Bom Ladrão, Grande Ladrão, Homem Gato e Homem de Borracha foram algumas das alcunhas que ele ganhou da imprensa, por sua habilidade de andar sobre as casas, de entrar nelas pelos telhados e roubar ricos – sempre sem usar a violência –, e de fugir espetacularmente dos presídios. Foram dezessete escapadas desde a infância, passada em Pisa, na Itália, onde a pobreza o levou a cometer os primeiros furtos.

    Nascido em 1878 – segundo ele mesmo; para alguns biógrafos, seu nascimento se deu em 1888 –, Gino chegou homem feito à capital paulista, depois de desembarcar em Santos no ano de 1913. Já tinha um histórico de roubos, prisões e fugas na Itália e na França, e veio para o Brasil porque era, segundo contava, um homem marcado na sua terra. Histórias de sucesso de uma tia e de outros italianos que viviam em São Paulo o atraíram e o incentivaram a buscar o sustento na cidade de maneira honesta. Mas sua vida boêmia atrapalhava tudo. O dinheiro que Meneghetti ganhava na fábrica de chocolates Falchi era pouco para seus hábitos de frequentador da noite e apreciador do vinho chianti.

    Por isso, Gino largou o emprego e foi morar numa pensão, onde encontrou o amor de sua vida, Concetta Tovani, e conterrâneos que o reconduziram aos roubos. Passou a vender revólveres repassados por eles, que diziam ser contrabandistas de armas. Armas que, na verdade, eram roubadas. Meneghetti caiu numa armadilha policial, e em março de 1914 foi preso pela primeira vez em território brasileiro, e condenado a oito anos de prisão.

    Na cadeia, junto com outros presos, tentou cavar um túnel, mas um detento delatou o plano e o acusou de ser o mentor da ideia. Por isso, o italiano foi colocado nu em um poço, fechado por cima com uma grade. Foi aí que começou sua fama: numa noite fria do mês de julho de 1915, ele escalou o poço com um pé em cada parede e conseguiu arrancar uma das barras de ferro, mas o espaço aberto era pequeno. Mesmo assim, ele atravessou o vão apertado, deixando pedaços de pele nas barras, fugiu pelo telhado e desceu perto do Jardim da Luz. Era uma hora da manhã. Nu, no meio da garoa paulistana, conseguiu despistar um guarda e seguiu rumo à casa da tia para obter roupas.

    Os jornais fizeram grande estardalhaço, e ele passou a ser um homem procurado. Abusado, voltou a praticar furtos e deixava recados nas casas roubadas. Como no palacete da baronesa de Arary, onde ele a alertou para que escolhesse melhor seu fornecedor, pois suas joias eram quase todas falsas. Também escrevia com frequência cartas para os jornais gozando a polícia. Atitudes como essas o tornaram um mito, uma espécie de Robin Hood de São Paulo. No entanto, embora ajudasse os pobres – segundo algumas lendas, ele comprava alimentos para pessoas humildes que chegavam aos armazéns sem dinheiro suficiente –, não praticava seus furtos com essa finalidade.

    Mas havia um outro motivo para a sua fama: ele nunca praticava qualquer ato de violência. “Jamais roubei um pobre. Só me interessa tirar dos ricos, e tirar joias, que são bens supérfluos que só servem para alimentar a vaidade”, dizia, coerente com seus ideais anarquistas. Quando criança,na Itália, Meneghetti já se sentia injustiçado por ser muito pobre, enquanto havia ali perto pessoas muito ricas, que desperdiçavam comida. Ele foi criando uma “consciência de classe” desde essa época. Leu muito, estudou. Já chegou ao Brasil adepto do anarquismo.

    Seus furtos ocorreram em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em toda a Região Sul e até no Uruguai. Foi preso em vários estados, mas sempre conseguia fugir e voltar para São Paulo. Relatos fantasiosos diziam que ele usava molas nos pés para poder escapar da polícia saltando da rua para os telhados quando ficava acuado. Seu heroísmo era reforçado porque ele fazia com a polícia o que os pobres, constantemente perseguidos e discriminados, gostariam de fazer.

    Cansada, em 1926 a polícia armou um cerco em torno da casa na Rua dos Gusmões, no Centro da cidade, onde moravam sua mulher e seus filhos. Meneghetti sabia da armadilha, mas uma noite, um tanto alcoolizado, resolveu procurar a família. Acabou encurralado e, como sempre, subiu no telhado atrás de uma rota de fuga. Mas todo o quarteirão estava cercado. “Havia mais policiais do que paralelepípedos”, disse ele posteriormente. Informada, a população correu em massa para lá. Cerca de 50 mil pessoas, segundo os jornais, esperavam para ver como Meneghetti conseguiria fugir. Numa das várias tentativas de alvejá-lo, o delegado Waldemar Dória acabou sendo atingido por uma bala e morreu. O ladrão foi acusado do crime, coisa que negou até o fim da vida. Mais tarde ficou provado que ele tinha razão, pois foram tiros de calibre 38 que acertaram Dória nas costas – Gino portava um revólver 32. Algum desafeto do delegado o matou, aproveitando a ocasião.

    Às 11h15 da manhã, Meneghetti finalmente se entregou. O fascínio daqueles que o viam como um herói bandido popular subitamente se transformou em ódio, enquanto a população o vaiava e fazia ameaças. Muito torturado, Gino foi posto numa cela da “Bastilha do Cambuci”, um presídio de péssima fama, para onde eram enviados os inimigos do regime.Mesmo assim, sozinho numa cela, era vigiado 24 horas por dia. Ficou trancafiado até que fosse construída, especialmente para ele, uma cela blindada. Sua agonia era tanta que havia momentos em que ele gritava repetidamente “Io sono um uomo” (eu sou um homem), para reclamar do tratamento desumano ao qual vinha sendo submetido. Mas sempre que o ladrão começava a protestar, um policial se aproximava do cárcere, cuspia e jogava fezes em sua direção, antes de submetê-lo a mais uma sessão de tortura.

    Com medo de ser envenenado, Meneghetti “lavava a comida” que recebia. Certa vez, contou ao jornalista Orlando Criscuolo (1917-1992)que, quando um rato entrava em sua cela pelo buraco do esgoto, ele o deixava comer um pouco de sua comida, tampava o buraco e esperava para ver se o roedor não morria. Só depois é que Gino se alimentava. Quem morreu de infarto nessa época foi Concetta, que deixou os filhos Lenine e Espártaco – nomes que homenageavam o revolucionário russo de 1917 e o líder de uma revolta de escravos na Roma antiga – com parentes. Libertado 18 anos depois, em 1944, ele encontrou uma cidade diferente, cheia de arranha-céus e inviável para um gato dos telhados. Mesmo assim, o mito persistia; prova disso foi a multidão que o esperava na saída da cadeia. Para que pudesse viver “honestamente”, Meneghetti foi trabalhar em uma banca de jornal, mas não abandonou o hábito de roubar. Acabou sendo preso várias outras vezes, até 1970.

    Numa das suas saídas da cadeia, na década de 1950, ele foi morar uns dias na casa de Criscuolo, que se tornara seu amigo. A mulher do jornalista, Iracema, ciente da fama do ladrão, ficou com medo. Mas o homem que recebeu em casa era um sujeito simpático, cortês, culto, que gostava de contar histórias para crianças. Por conta desse perfil, sua fama chegou a outros países. Quando o escritor e filósofo Albert Camus (1913-1960) esteve em São Paulo em 1949, ele fez questão de incluir em seu roteiro uma visita ao ladrão, que passava uma temporada encarcerado. Na despedida, o autor francês perguntou se podia fazer alguma coisa por ele. Meneghetti respondeu: “Sim, me dê um cigarro”.

    O ladrão, que adotou vários nomes falsos e declamava versos do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), passou seus últimos anos pobre, dependendo dos filhos, até morrer de trombose em 1976, aos 98 anos. Entre uma prisão e outra, Gino chegou a acumular fortunas, mas cada centavo que obteve foi confiscado pela polícia. Até hoje, Meneghetti é visto pelos paulistas como um exemplo do “bom ladrão”: amado pelos pobres e temido pelos ricos. Anarquista, admirador da Revolução Russa, respeitador das mulheres e das crianças, venerado e odiado – e nem por isso vingativo –, ele dizia: “Só não fiz em São Paulo o que eu não quis”. E, ao contrário de muitos homens supostamente honestos, tinha a sua ética: “Sempre detestei homens que malbaratam o dinheiro público”.

     

    Mouzar Beneditoé jornalista e autor do livro Meneghetti, o gato dos telhados (Boitempo Editora, 2010).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    BERNARDI, Célia de. O lendário Meneghetti – Imprensa, memória e poder. São Paulo: Annablume e Fapesp, 2000.

    CAMACHO, M. A. Meneghetti – Memórias. São Paulo: Editora Cleópatra, 1960.

    COSTA JR., Paul José da. O incrível Meneghetti. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2001.

    MODERNELL, Renato. O Grande LadrãoA História de Gino Meneghetti. Porto Alegre: Sulina, 1990.

     

    Saiba Mais - Filme

    “Dov'è Meneghetti”,curta-metragem de Beto Brant, 1989.