Outra tentativa

Beatriz Perrone-Moisés

  • Muitos navios franceses começaram a frequentar a costa do Brasil logo depois de seu achamento oficial. Do ponto de vista português, eram invasores. Os franceses invocavam debates jurídicos em curso para discutir a exclusividade ibérica sobre as terras do Novo Mundo. Para os tupis da costa, se havia invasores, não eram os franceses, que sempre lhes pediram licença. E nunca deixaram de entrar: em meados do século XVI, já havia dezenas de pontos no litoral brasileiro nos quais súditos do rei da França tinham instalado bases de apoio para um comércio altamente rentável de pau-brasil e de outras madeiras, especiarias, papagaios e micos. Um desses pontos foi a região da Guanabara, base para a fundação da colônia chamada de França Antártica. Depois de serem expulsos pelos portugueses da Guanabara e da costa nordeste do Brasil, os franceses se voltaram para a região do Maranhão. Embora não atingida pela colonização portuguesa, ela  já havia sido brevemente explorada por Aires da Cunha, Diego Nunes e Luís de Mello, a serviço do rei de Portugal.

    No final do século XVI, uma dessas viagens de navios mercantes daria origem à segunda colônia francesa em território hoje brasileiro: a França Equinocial. Em 1596, um nobre francês de nome Charles des Vaux [nasc e morte], depois de ter passado dois anos na costa norte da América do Sul, voltou à França para promover a ideia de estabelecer ali uma colônia. Sua estada na região do Maranhão tinha começado por um acidente: o capitão Jacques Riffault, que fazia viagens regulares à região havia alguns anos, perdera ali um de seus navios e fora obrigado a deixar parte de sua tripulação. Des Vaux foi um dos que ficaram com a gente de Uirapive – chefe tupi com quem Riffault tinha selado aliança – e tinha vários argumentos para convencer o rei Henrique IV a fundar uma colônia no Maranhão. A região estava “vazia” – como diziam – de ocupação europeia. Os franceses contavam com a aliança dos nativos, que já haviam declarado a des Vaux sua disposição de receber mais deles em suas terras.  Além disso, o lugar proposto, bem próximo da linha equinocial, ou Equador, tinha um clima abençoado, de temperaturas constantemente amenas, com muito sol e fartas riquezas, além de muitas terras férteis, regularmente regadas por chuvas e cortadas por grandes rios de água límpida. Uma colônia ali tinha tudo para prosperar e só poderia contribuir para a grandeza do reino de França.

    Henrique IV convocou outro fidalgo, Daniel de la Touche [nasc e morte], senhor de La Ravardière, e ordenou-lhe que fosse com des Vaux para a região. Partiram em 1607, e La Ravardière pôde comprovar os relatos de des Vaux. Quando voltaram, o rei tinha sido assassinado e o projeto de fundação de uma colônia no Maranhão teve de esperar alguns anos, pois se Henrique IV havia prometido auxílio financeiro, após sua morte a Coroa francesa já não estava disposta a dar a La Ravardière mais do que seu aval.

    Em busca de parceiros, ele encontrou dois outros nobres interessados em investir tempo e recursos numa nova colônia: François de Rasilly [nasc e morte] e Nicolas Harlay de Sancy [nasc e morte]. Em 1611, a rainha regente nomeou-os “lugares-tenentes generais nas Índias Ocidentais e terras do Brasil”. Comprometiam-se a fundar no Maranhão uma colônia, para “o engrandecimento da França e a expansão da fé”. O monopólio do comércio na região, concedido pela Coroa, viabilizaria o projeto.

    No dia 19 de março de 1612, zarparam de Cancale, na Bretanha, três navios em direção ao Maranhão, levando nobres, colonos de vários ofícios e quatro capuchinhos que haviam sido escolhidos entre os quarenta que se apresentaram para integrar, a pedido da rainha-mãe, a nova missão no Maranhão: Yves d’Evreux [nasc e morte], que era o superior da missão, Claude d’Abbeville [nasc e morte], Arsène de Paris [nasc e morte] e Ambroise d’Amiens[nasc e morte]. Aos dois primeiros devemos as fontes mais importantes sobre essa colônia que estava para ser fundada.

    A viagem não foi tranquila, mas finalmente chegaram ao Maranhão em agosto. Os três navios lançaram âncora na pequena ilha desabitada – chamada de Sainte Anne pelos franceses e Ypaon miry pelos tupis – ao lado da Ilha Grande do Maranhão, hoje Ilha de São Luís. Charles des Vaux foi encarregado da primeira missão diplomática: confirmar se os índios continuavam dispostos a receber os franceses em sua ilha. Des Vaux convocou o conselho de chefes e anciões e disse-lhes que o rei da França tinha enviado valorosos soldados para lutar com eles nas guerras e padres para ensinar a palavra de Deus, com muitas mercadorias. Disse também que estavam à espera, e perguntou aos tupis se queriam recebê-los, continuar aliados dos franceses e aceitar o batismo. Se não quisessem mais, não desembarcariam e retornariam imediatamente à França. Consta que os tupis teriam respondido que muito os espantava que des Vaux, depois de ter passado tanto tempo com eles, fizesse tal pergunta, pois parecia não conhecê-los; deveria saber que eles nunca faltavam à palavra dada, e já tinham dito sim.

    Os recém-chegados, então, juntaram-se aos seus 400 conterrâneos – muitos deles marujos em uma de suas estadas de meses à espera do carregamento dos navios; outros, residentes – que já estavam na Ilha Grande. Logo iniciaram, com a ajuda dos tupis aliados, a construção das casas destinadas aos novos colonos e de um forte, ao qual La Ravardière deu o nome de São Luís, em homenagem ao menino-rei Luís XIII. Enquanto isso, Rasilly foi com des Vaux a cada uma das aldeias da Ilha Grande para se apresentar, assim como aos padres Claude e Arsène, e confirmar a aliança. Na expressão de d'Abbeville, os lírios – símbolo da realeza francesa – começavam a florescer na região equatorial. Tudo ia bem, mas a colônia precisava de mais gente, mais dinheiro e mais apoio para se manter. Resolveram, então, que Rasilly retornaria à França para prestar conta dos progressos da colônia nascente e buscar meios de sustentá-la. Quando Rasilly retornasse, La Ravardière passaria a ele o comando e voltaria definitivamente para casa.

    Conta d'Abbeville que, ao saberem dos projetos de Rasilly, os chefes da ilha de Maranhão resolveram enviar à França seis dos seus, dos quais apenas três sobreviveriam à umidade e à agitação da estada na terra de seus aliados. A chegada da comitiva que levava François de Rasilly, Claude d'Abbeville e os três Toupinambous Maragnans a Paris, em 12 de abril de 1613, foi marcada por grande comoção entre o povo e interesse na corte: desfilaram nas ruas e salões dançando com seus maracás, foram recebidos como embaixadores no Louvre, vestidos com roupas de tafetá, solenemente batizados – tendo como padrinho e madrinha o rei e a rainha regente – e casados com mulheres francesas. Em 1614, embarcaram de volta para o Maranhão os embaixadores, suas esposas, o padre Claude, doze capuchinhos, dezenas de artesãos e nobres decididos a integrar a nova colônia. Rasilly ficou na França, empenhado em conseguir mais apoio para a colônia.

    Enquanto isso, certos da solidez de suas fortificações na Ilha Grande e de sua aliança com os tupis, os franceses se puseram a explorar a costa e a expandir suas alianças pelo continente. Mas os portugueses, rapidamente alertados, começavam a se preparar para expulsá-los novamente. Gaspar de Souza, governador-geral do Brasil, chegara a Pernambuco em 1613 já com a ordem de reconquistar o Maranhão. La Ravardière voltou para o Forte São Luís assim que foi avisado da aproximação das tropas lusas. As primeiras batalhas entre os portugueses e seus aliados indígenas, de um lado, e franceses e seus aliados indígenas, do outro, ocorreram já no final de 1614. Após um período de trégua e conversações diplomáticas, no dia 1º de novembro de 1615 os portugueses tomaram o forte na batalha de Guaxenduba, após uma vitória por eles considerada milagrosa. Naquele mesmo mês de novembro, Luís XIII se casava com Ana de Áustria, herdeira do trono espanhol. O casamento selava uma aliança entre a França e a Espanha que condenaria a colônia do Maranhão ao abandono e ao esquecimento, em virtude da união das coroas ibéricas, entre 1580 e 1640. La Ravardière foi enviado a Lisboa, onde permaneceu preso na Torre de Belém por alguns anos até ser devolvido à França, onde tentaria recuperar a colônia. Rasilly, que estava na França no momento da tomada do forte, também continuou tentando salvar o projeto no Maranhão. Em vão.

    O projeto de engrandecimento da França e de expansão da fé que animara a fundação da França Equinocial seria realizado, mas na América do Norte, onde, na mesma época, os franceses fundavam duas outras colônias, Acádia e Nova França, hoje no Canadá. No Brasil, que fora destino de tantas viagens de navios franceses, palco de tantas alianças bélicas e comerciais com os tupis e razão de tantos entreveros diplomáticos e batalhas entre franceses e portugueses, essa segunda colônia francesa foi a última.

    Beatriz Perrone-Moisés É Professora Do Departamento De Antropologia Da Universidade De São Paulo E Autora Da Tese “Relações Preciosas: Franceses E Ameríndios No Século Xvii” (Ppgas-Usp, 1996).

    Saiba Mais - Bibliografia:

    D'ABBEVILLE, CLAUDE. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha de Maranhão e terras circunvizinhas. São Paulo: Edusp/Itatiaia, 1975.

    D'EVREUX, YVES. Viagem ao norte do Brasil, feita nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Siciliano, 2002.