Em 1994, pouco antes de assumir a Presidência, Fernando Henrique Cardoso fez seu discurso de despedida no Senado dizendo que o país precisava encerrar a Era Vargas. A tarefa, aparentemente, não foi cumprida. Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, foi inúmeras vezes comparado a Getulio. Afinal, qual foi o legado de Vargas e o que restou do velho ex-presidente?
Ricardo Bielschovsky
Professor da UFRJ e economista da Comissão Economia para a América Latina e o Caribe (Cepal)
“Lula recuperou muita coisa dessa corrente, tanto no terreno econômico como no social.”O primeiro governo Vargas centraliza o poder e cria instituições com uma perspectiva nacional, acionadas para efeitos econômicos. Funda uma série de comissões que darão origem a empresas como a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Petrobras. No seu segundo governo, ele constitui a base financeira da expansão da infraestrutura e da indústria, com iniciativas como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e o fundo de reaparelhamento econômico. É Vargas, portanto, que constitui o Estado brasileiro responsável por sustentar a industrialização e o desenvolvimentismo.
A corrente nacional desenvolvimentista, presente nos anos 1950 e no início dos anos 1960, propunha que o Estado interviesse não só na economia, mas também no campo social. Ela foi resistente mesmo durante a ditadura e, depois de relativamente marginalizada da vida política, se recuperou a partir dos anos 1980 e teve forte atuação na Constituinte de 1988. A primeira metade dos anos 80 foi marcada por enorme dificuldade econômica do Estado, mas ainda sem espaço para o neoliberalismo. Permaneceu a ideia de que era necessária a forte intervenção estatal na economia. Isto muda na década de 90. Mas o neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso era “de resultados”: servia para trazer livremente recursos financeiros, abrir as importações e, com isso, fazer o que era essencial politicamente: controlar a inflação. A criação de um sentido privatista para atrair capitais externos era mais importante do que um viés ideológico antiestado.
O governo Lula recuperou muita coisa dessa corrente, tanto no terreno econômico como no social. Fortaleceu o BNDES e a Petrobras, ampliou a atuação do Banco do Brasil e da Caixa, fez política industrial. Na área social houve, por exemplo, a elevação do salário mínimo e o Bolsa Família. Existiu uma perspectiva de ampliação da intervenção do Estado na economia. Nem Fernando Henrique nem Lula tinham Vargas todo o tempo na cabeça. Suas políticas atendiam às questões do seu tempo. A forma de conduzir o Estado brasileiro hoje em dia tem mais a ver com a tradição de Getulio Vargas do que com o modelo de FHC. A não ser no que se refere à liberdade de movimentação de capitais financeiros – nisso os governos Lula e Dilma preferiram mexer pouco.
Francisco Weffort
Cientista político e ex-ministro da Cultura no governo Fernando Henrique Cardoso
“O personalismo virou o estilo da política brasileira.”Vargas com certeza funda uma tradição personalista. É claro que o personalismo é anterior, mas não lembro de nenhuma outra figura tão relevante neste aspecto na história política brasileira. Há herdeiros da sua figura, mas nada equivalente. Entretanto, não acho que ele tenha simplesmente implantado esse personalismo. É importante lembrar que isso fazia parte da sua época. Trata-se do período de grandes lideranças carismáticas. Foi a época não só do fascismo e do nazismo, mas também do continuísmo do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt e do mexicano Lázaro Cárdenas.
Acho que para entender seu carisma é importante lembrar também que Getulio foi o herdeiro da tradição oligárquica rural brasileira e, ao mesmo tempo, o homem que deu a inflexão mais forte no sentido da industrialização. As políticas que ele implementou impulsionaram a industrialização, resultando no Estado que seria herdado por Juscelino.
Muitos declararam o fim da era Vargas. Quando Fernando Henrique pensou nisso, ao ocupar a Presidência, ele se referia a uma época que acabou. E, de fato, esse nosso período de grande internacionalização da economia é muito diferente daquele de Getulio. Enquanto vivemos um momento de consenso em torno das políticas econômicas, a época de Vargas era marcada por um profundo debate em torno das soluções nacionais. Mas é claro que, do ponto de vista político, ela não acabou.
Nosso presente tem elementos muito parecidos com o tempo de Getulio. Uma tradição centralista autoritária, quer dizer, uma democratização paradoxalmente conquistada por uma via autoritária. É impossível não ver a herança de um corporativismo consolidado. Todo mundo se encontra vinculado ao Estado. Os partidos políticos são frágeis e procuram sua projeção através justamente de grandes líderes. Claro que hoje, com exceção de Lula e de Fernando Henrique, não há grandes lideranças nos partidos. Ainda assim eles estão à procura dessa figura. O personalismo virou o estilo da política brasileira, mas com um êxito bastante limitado.
Daniel Aarão Reis
Historiador e professor da UFF
“O estatismo varguista está de pé.”As relações da tradição de Vargas com as esquerdas no Brasil não são lineares. Como chefe do governo repressor, ele foi visto como um ditador que perseguia comunistas e trabalhadores. Essa atitude persistiu até 1942, quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial. A partir daí, uma ala do Partido Comunista apoiou uma frente contra o nazismo. Em 1947, com a ilegalidade do partido, eles mudaram de atitude e radicalizaram, defendendo a luta armada. Quando Vargas se matou, houve uma grande comoção nacional. Os comunistas percebem então que tinham assumido uma posição bastante antipopular.
A herança de Vargas suscita leituras diferenciadas. No período entre 1961 e 1964, o PCB se uniu aos trabalhistas em uma aliança informal na defesa da Constituição e das conquistas consagradas na CLT. É claro que nesse momento a memória de Vargas como ditador e criador de uma estrutura corporativista é menos lembrada.
Houve quem dissesse que o varguismo morrera com o golpe de 1964, mas o nacional desenvolvimentismo, a política externa independente e, sobretudo, a estrutura corporativa foram mantidos. Os militares sabiam muito bem que se tratava de uma estrutura vertical controlável. A esquerda também fracassou em criar uma alternativa à estrutura corporativa. Por isso mesmo voltou a participar dela.
O mais curioso, depois da ditadura, foi a recuperação por todos os governos depois da transição de algo essencial na tradição varguista: o arco de alianças. Getulio sempre foi o homem da conciliação, não de enfrentamentos. Suas alianças compreendiam os trabalhadores industriais, a burguesia industrial, a classe média e a agrária. Só os camponeses ficavam excluídos. Acho que, de um modo geral, todos os governos recentes tiveram essa característica mas, sem dúvida, Lula é o grande herdeiro dessa tradição de aliança. Ele é um filho da estrutura sindical varguista. O estatismo varguista está de pé. Redefinido, mas com as grandes linhas, o arco de aliança, aí presentes.