Há mais de 4 mil anos, nas civilizações que serviram de modelo à cultura ocidental, e no Brasil particularmente, a homossexualidade vem sendo rotulada por diversos nomes que refletem o alto grau de reprovação associado a esta performance erótica: abominação, crime contra a natureza, pecado nefando, vício, abominável pecado de sodomia, descaração, desvio, doença, viadagem, frescura. E os homossexuais – mais os do sexo masculino do que as lésbicas – tratados com requintes de crueldade, condenados a diferentes penas de morte: apedrejados, segundo a Lei judaica; decapitados em toda a cristandade por ordem do imperador Constantino a partir de 342 d.C.; enforcados, afogados ou queimados nas fogueiras da Inquisição desde a Idade Média até os tempos modernos; despedaçados na boca de um canhão, como ocorreu com um índio no Maranhão em 1614; queimados pelos nazistas nos campos de concentração.
Os resquícios permanecem. Hoje, no Brasil, a cada 27 horas um gay, travesti, transexual ou lésbica é brutalmente assassinado, vítima da homofobia – o ódio à homossexualidade. Nosso país é o campeão mundial nestes crimes: nas últimas três décadas, 4.648 homicídios foram documentados. Metade dos assassinatos registrados ao redor do mundo ocorre em nosso país. Matam-se muitíssimo mais LGBTs no Brasil do que nos 78 países onde ser gay ainda é crime. Como diz o ditado popular: “precisa ser muito macho pra ser bicha!”.Se, de um lado, a “causa” da homossexualidade é nebulosa – ainda que meia centena de pseudoteorias tentem explicar sua gênese – a ciência etno-histórica indica com sólidos argumentos que a homofobia tem suas raízes fincadas na tradição judaico-cristã. Há mais de 4 mil anos, os machos donos do poder perceberam o caráter ameaçador, político e revolucionário das relações unissexuais, já que elas ameaçam a hegemonia do macho dominante e do patriarcado. Daí transformar o sexo e o amor entre pessoas do mesmo gênero no mais abominável de todos os pecados.Hoje, quando se ouve de norte a sul do Brasil esta sentença de morte cumprida quase diariamente, viado tem mais é que morrer!, inconscientemente está se repetindo a milenar condenação atribuída à própria vontade divina no Antigo Testamento: “o homem que dormir com outro homem, como se fosse mulher, deve ser apedrejado!”. Diga-se, entretanto, que respeitados exegetas católicos e protestantes desconstruíram há décadas as supostas condenações de Javé aos machos que transam entre si e às fêmeas que se amam. Recentemente, o próprio papa Francisco declarou: “quem somos nós para julgar os homossexuais?”.No Brasil colonial, a Inquisição e as Ordenações do Reino previam severas punições aos “sodomitas” e “fanchonos”. Eles tinham seus bens sequestrados, eram encarcerados por longos anos em lúgubres masmorras, açoitados publicamente “até escorrer sangue”, degredados para terras inóspitas ou obrigados a remar até a morte nas galés d’El Rei, e ainda eram queimados nas fogueiras dos Autos de Fé.Através da pedagogia do medo, também os parentes que acobertassem praticantes secretos do pecado de sodomia eram ameaçados de punições, como a exclusão de toda a sua parentela dos cargos públicos, das ordens religiosas e demais regalias. Ter um filho homossexual representava a morte social da família. Portanto, quando ainda hoje um deputado federal diz publicamente “prefiro meu filho morto do que gay”, repete a mesma intolerância milenar contra os “filhos da dissidência”, que diferentemente das demais minorias raciais e sociais, não encontram apoio sequer dentro da própria casa e da família. Enquanto pais negros ou judeus reforçam a autoestima e o orgulho racial entre seus filhos, quando os parentes descobrem um homossexual na família, frequentemente o insultam, agridem e chegam a expulsar de casa este membro espúrio.Foi somente em meados do século XIX, acompanhando os novos ideais libertários do Código Napoleônico, que a sodomia foi descriminalizada. Em 1869, escreve-se pela primeira vez o termo “homossexual”, surgindo na Alemanha o primeiro grupo de defesa da cidadania dos homoeróticos em 1897. Com a ascensão do nazismo, contudo, a perseguição aos amantes do mesmo sexo fez parte da política de “limpeza racial e social”. O resultado foi o encarceramento de mais de 300 mil “pederastas” nos campos de concentração.O ano de 1969 marca a data de fundação do moderno movimento homossexual, quando em Nova York, no Bar Stonewall, gays e travestis enfrentaram a violência policial. A partir desta data, 28 de junho passou a ser comemorado mundialmente como o “dia do orgulho gay”, hoje internacionalmente conhecido como Movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). O termo homofobia é usado pela primeira vez em 1972, nos Estados Unidos, e em 1984, no Brasil.No final dos anos 1970, surge também no Brasil o movimento de libertação homossexual, com a fundação do jornal Lampião da Esquina, do grupo Somos, em São Paulo, e do Grupo Gay, da Bahia. Hoje existem no país mais de 300 grupos e associações LGBT que lutam contra a homofobia e pela cidadania plena de aproximadamente 10% de nossa população constituída por “viados, sapatonas e travecas”, termos insultuosos ainda usados pela população e em pichações nas ruas.O Brasil é extremamente contraditório para as minorias sexuais: em seu lado cor-de-rosa, abriga a mais concorrida parada gay do mundo, tem a maior associação LGBT da América latina, o casamento homoafetivo foi legalizado por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal, as novelas mostram cada vez mais personagens fora do armário. Porém, o mesmo país ostenta uma face vermelho-sangue, representada pelos cruéis espancamentos e assassinatos de gays e travestis, instigados por declarações altamente homotransfóbicas de parlamentares e lideranças cristãs.Apesar de repetidas declarações da então candidata Dilma Rousseff equiparando a homofobia à barbárie, o projeto de criminalização desta prática, assim como um “kit gay” que deveria ter capacitado milhões de jovens no respeito à diversidade sexual e de gênero, por pressão dos fundamentalistas evangélicos, foram vetados pela presidente, que chegou a declarar: “meu governo não fará propaganda de opção sexual”. Homofobia governamental.Contudo, há solução para que gays, lésbicas e transgêneros brasileiros deixem de ser assassinados e tratados como marginais. Urge a adoção de medidas que se revelaram eficientes em países mais civilizados, onde pessoas LGBTs são respeitadas como cidadãs plenas. A primeira delas é a descriminalização da homossexualidade e a aprovação de leis que condenem a discriminação sexual com o mesmo rigor que o crime de racismo.Os tabus religiosos que demonizam o amor entre pessoas do mesmo sexo também precisam ser erradicados. Para isso, as igrejas deveriam promover pastorais específicas voltadas para o respeito à livre orientação sexual e à identidade de gênero. Isto ajudaria, por exemplo, a desconstruir a homofobia cultural que impede a sociedade heteronormativa de reconhecer os direitos humanos e a diversidade das minorias sexuais e de gênero, criando sentimentos de tolerância dentro das famílias para que respeitem seus filhos e parentes LGBT: pesquisas revelam que o índice de suicídios de adolescentes gays é cinco vezes maior do que entre heterossexuais. A academia também tem um papel a cumprir, ampliando as pesquisas que resgatem a história e a dignidade desses grupos. Quebrar o complô do silêncio e divulgar informações corretas e positivas a respeito do “amor que não ousava dizer o nome”, desmascarando as falsas teorias que patologizam a homossexualidade e a transexualidade, é fundamental neste percurso.No campo da política institucional, é necessário substituir a homotransfobia reinante nos partidos políticos que tratam a cidadania homossexual como luta menor, erradicando dos grupos que defendem os direitos humanos qualquer tipo de manifestação de preconceito que viole a dignidade e os direitos da comunidade LGBT. Além disso, gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais devem ser estimulados a assumir publicamente sua identidade sexual e seu papel de gênero. A luta, no fim das contas, é por um só objetivo: que todos sejam reconhecidos como seres humanos, com direito pleno à cidadania.Luiz Mott é professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, fundador do Grupo Gay da Bahia e autor de Crônicas de um gay assumido (Record, 2003) e de Homossexualidade: Mitos e verdade (Editora GGB, 2003).Saiba MaisBORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.GREEN, James. Além do Carnaval. São Paulo: Editora Unesp, 2000.TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Editora Record, 2000.Internet
Ainda a barbárie
Luiz Mott