Eros político

Daniel Barbo

  • Muitas fontes literárias e iconográficas gregas mostram homens cortejando jovens nos ginásios e nos banquetes, como ilustra a imagem. (Imagem: MUSEU DO LOUVRE, PARIS – FRANÇA)Não havia homossexualidade na Grécia Antiga. A relação homoerótica, mais bem documentada entre os gregos, foi a estabelecida, ao longo do século V a.C., pelo vínculo entre um adulto masculino (erastés) e um jovem (erómenos), pertencentes à classe dos cidadãos das aristocracias de virtualmente todas as poleis. Chamada de paiderastia, ela tinha dois aspectos interligados: o pedagógico e o erótico. O cortejo de um jovem por parte de um cidadão que já alcançara a maturidade era não apenas socialmente aceito, como bem visto e esperado nos círculos aristocráticos.
     
    Isto explica porque a cultura grega, diferentemente da ocidental moderna, não concebia noções de orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual) como identificadores sociais. Não havia a distinção de comportamentos ou desejos eróticos em função do gênero dos participantes da relação, mas do papel que cada um desempenhava no ato erótico: quem penetrava e quem era penetrado. 
     
    O ato erótico era polarizador e hierárquico. Ele dividia, classificava e distribuía os parceiros em duas posições radicalmente opostas: o papel ativo e o passivo. Social e politicamente articuladas, estas categorias expressavam as relações de poder. Isto significa que cidadãos masculinos adultos, que exerciam um papel político na sociedade, obrigatoriamente eram ativos no ato sexual. Dessa forma, podiam ter relações eróticas legítimas com pessoas de status sociopolítico inferior, fossem elas mulheres, garotos, estrangeiros ou escravos, os quais não tinhíam participação política direta. 
    Estabelecia-se, assim, uma equiparação entre o papel erótico de um indivíduo e seu status sociopolítico. A autoridade e o prestígio do cidadão masculino adulto, portanto, expressam-se em sua precedência sexual – em seu poder de iniciar um ato sexual e em seu direito de obter prazer por meio dele. 
     
    Muitas fontes literárias e iconográficas gregas mostram homens cortejando jovens nos ginásios, nos banquetes, na ágora. Segundo Platão (O Banquete) e Ésquines (Contra Timarco), cada um tinha uma condição, uma função e um comportamento específicos nessas relações homoeróticas. Os parceiros pertenciam a diferentes categorias de idade e tinham estatutos cívicos distintos: o adulto, solteiro ou casado, era cidadão pleno. O jovem só obteria este status por volta dos 20 anos. O desejo erótico não era visto como recíproco: o adulto era o sujeito. O jovem, objeto.
     
    Aos que ainda não haviam alcançado a cidadania, o consentimento ao vínculo erótico só se tornava digno na medida em que o relacionamento lhes desse a possibilidade de enveredar no caminho das virtudes cívicas, o que deveria ser aberto pela convivência com o adulto. Esta era a função pedagógica da relação: esperava-se que o cidadão conduzisse o jovem ao ponto desejado pela sociedade, que era a futura participação na vida política da cidade. Ceder a alguém que não lhe proporcionasse este caminho era uma desonra perante a comunidade. 
     
    Pela função pedagógica e pela condição de ambos na relação, decorre que o costume grego encorajava o cidadão a “caçar” seu erómenos. E exigia que o “objeto” não cedesse facilmente a estas investidas. A própria comunidade examinava seus comportamentos, mostrando quem deveria ser louvado ou evitado. A capitulação muito rápida por parte do jovem era considerada uma desgraça, por ser necessário certo intervalo de tempo moralmente estabelecido. Se a rendição fosse por medo de resistir a maltrato, por dinheiro ou por interesse material, isto também era rechaçado: o jovem deveria mostrar-se devidamente desdenhoso de tais benefícios, sob pena de ser taxado de prostituto. Esta fama, no caso de cidades como Atenas, poderia render no futuro um processo que lhe retiraria os direitos da cidadania.
     
    Se para o erastés não era considerado vergonhoso o fato de ele se mostrar apaixonado e completamente escravizado por um erómenos, no caso deste, só havia um tipo de servidão voluntária que não era escandalosa: a busca das virtudes cívicas úteis à pólis. Este era o único modo pelo qual o jovem poderia gratificar seu erastés com legitimidade.
     
    Dadas as características deste modelo de homoerotismo expresso pela paiderastia, devemos consequentemente demarcá-lo em relação à categoria da homossexualidade, entendida pelo filósofo francês Michel Foucault como uma identidade construída na modernidade do século XIX. Uma série de elementos distinguem claramente as identidades do erastés e do erómenos daquela do homossexual. Alguns mais evidentes são a distinção etária, a função pedagógica, a fronteira obrigatória entre atividade e passividade eróticas, a isomorfia entre erótica e política, o fim do relacionamento estabelecido pela entrada do jovem na maturidade e a possibilidade da simultaneidade entre o casamento e o relacionamento homoerótico para o cidadão masculino. 
     
    Em termos psicanalíticos e identitários, homoerotismo é uma subjetividade possível do ser humano. A paiderastia e a homossexualidade são formas distintas dessa potencialidade. 
     
    Daniel Barbo é professor da Universidade Federal de Alagoas e autor de O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas Clássica (e-papers, 2008). 
     
    Saiba mais
     
    DOVER, Kenneth. J. A homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
    FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: O uso dos prazeres. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
    HALPERIN, David M. One Hundred years of homosexuality: and other essays on greek love. New York, London: Routledge, 1990.
    WINKLER, John. The constraints of desire: The Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece. New York, London: Routledge, 1990.