- Painho era um pai de santo afeminado. Sentado na sua cadeira de palha branca ou deitado na sua rede, regozijava-se do tamanho da fila de quem vinha se consultar com ele, mas quase sempre acabava preferindo a companhia de um homem bonito. Criado e interpretado por Chico Anysio nos anos 1980, Painho tornou-se um dos mais populares personagens do humorista. Muita gente reconheceu nele uma ideia que circulava na época, e se mantém ainda hoje: a de que existe certa relação entre homossexualidade e candomblé.
No artigo “Um matriarcado religioso e homossexualidade masculina”, publicado em 1940, a antropóloga norte-americana Ruth Landes relatou ter observado, nos candomblés menos tradicionais baianos, vários rapazes que chamou de “homossexuais passivos”. Eles teriam encontrado nessa religião a oportunidade de dar vazão à sua feminilidade. Alguns deles antes viviam da prostituição nas ruas, e nos terreiros ganharam grande prestígio.
Não tardou para que a jovem antropóloga fosse fuzilada por críticas. Melville Herskovits, fundador dos estudos afro-americanos nos Estados Unidos, acusou Landes de exagero e colocou em dúvida suas credenciais como pesquisadora. O francês Roger Bastide, também exímio pesquisador do candomblé baiano, afirmou que os poucos episódios de homossexualidade masculina eram “casos patológicos”, e que não havia nenhuma relação entre uma coisa e outra. O antropólogo brasileiro Artur Ramos, o mais poderoso estudioso da cultura negra nacional da época, também questionou a metodologia da norte-americana.Duas décadas depois, o antropólogo e psiquiatra pernambucano René Ribeiro fez uma pesquisa sobre o Xangô, a religião afro-brasileira de Recife. Entrevistou 60 homens, nos quais aplicou o teste projetivo “O desenho da figura humana” de Karen Machover, supostamente capaz de revelar a orientação sexual das pessoas. Apresenta-se uma folha de papel à pessoa a ser testada, a qual é instruída a desenhar uma pessoa. Quem aplica o teste observa o sexo da pessoa desenhada e, em seguida, pede ao desenhista que faça outra pessoa do sexo oposto. Um homem que desenha primeiro uma mulher é “suspeito” de homossexualidade, bem como aquele que enfatiza certas áreas do corpo masculino, como quadris e nádegas. Como antropólogo, Ribeiro concordou com os argumentos de Ruth Landes: a religião afro-brasileira oferecia um lugar para a manifestação da feminilidade e para a integração dos homossexuais. Como psiquiatra, não hesitou em encaixar aqueles homens nas categorias médicas da época: segundo ele, muitos “exibiram graus variados de desequilíbrio emocional e conduta desviada, desde o homossexualismo aberto ou disfarçado a problemas de adequação sexual, aí incluído o alcoolismo”.As conclusões de René Ribeiro são uma pista para entender as violentas críticas feitas ao trabalho de Landes. A esperança de Herskovits, Bastide e Ramos, arautos da cultura negra no Novo Mundo, era fortalecer a luta contra o racismo e a favor dos direitos humanos. É provável que suas objeções ao estudo da antropóloga derivassem (consciente ou inconscientemente) da homofobia generalizada da época: não queriam que a homossexualidade “contaminasse” a beleza cultural do candomblé.A partir de 1990, com a exclusão da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças, as pesquisas sobre sexualidade e religiões afro passaram a evitar juízos de valor. Mas nem por isso o assunto deixou de provocar interpretações e opiniões diversas.Raras são as menções a mulheres homossexuais no candomblé. O antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima comenta que, nos terreiros, como na sociedade em geral, a homossexualidade masculina é mais visível que a feminina, “pelas formas de comportamento dos pais [de santo]”. Além disso, segundo o pesquisador, a relação homossexual entre mãe e filha de santo “muitas vezes determina sérias crises no grupo, com preterições hierárquicas devidas ao favoritismo”.Em 1974, quando comecei a pesquisar sobre a homossexualidade nas religiões afro de Belém, vi que Landes tinha razão em um ponto: havia, sim, lugar de destaque em alguns terreiros para homens e mulheres homossexuais. Mas também percebi que teria que repensar o termo homossexualidade em si, pois a expressão local “bicha” não dizia respeito a homens que mantinham relações sexuais com pessoas do mesmo sexo: referia-se apenas aos indivíduos ditos “passivos” dessas relações – os mesmos descritos como “homossexuais passivos” tantos anos antes pela antropóloga norte-americana. Quem era “ativo” não era “bicha”, continuava definido como “homem”.Também no Pará, ficou evidente a associação entre os filhos de santo masculinos e as divindades africanas femininas, sobretudo Iansã e Oxum, ou divindades com certa ambiguidade de gênero, como Ogum Ledé e Oxumaré. Impossível também não perceber o fascínio das três “encantadas” (nome dado aos espíritos no Pará), que tendem a baixar nos finais das festas: Dona Mariana, Dona Erundina e Dona Jarina. Nada mais divertido do que passear pelos bares de Belém tomando cerveja com essas três potentes encantadas na cabeça dos seus filhos homens. Ninguém achava que elas agiam sobre seus filhos para que se tornassem homossexuais: a orientação sexual viria primeiro, levando a uma associação posterior com as divindades femininas.
Mas o que me interessou demais na época da minha primeira pesquisa foi entender melhor por que uma religião baseada na possessão por espíritos e na adivinhação atrairia e aceitaria personagens sociais tão vilipendiadas na vida cotidiana. Em primeiro lugar, lembrei-me da frequente associação entre homossexualidade e o teatro. A dança e as roupas nos terreiros liderados por pais homossexuais eram excepcionalmente bonitas e apreciadas por todos. Além disso, com base no argumento dos antropólogos ingleses Mary Douglas e Victor Turner, de que poderes mágicos são muitas vezes atribuídos a pessoas e a lugares socialmente marginalizados, sugeri que a presença de gente discriminada na vida cotidiana só poderia acrescentar a força mágica atribuída ao candomblé. Até hoje creio que tive um pouco de razão, sobretudo perante a observação de antropólogos que pesquisaram a diáspora das religiões afro em terras do Mercosul, que indicam que os espíritos mais populares tendem a ser justamente as pombagiras – mulheres que teriam tido múltiplos parceiros sexuais – na cabeça de médiuns homossexuais.Meus argumentos foram severamente criticados pelo pesquisador afro-americano J. Lorand Matory. Ele afirmou que eu havia ignorado a herança cultural africana e argumentou que a “feminilidade” dos filhos e das filhas de santo tinha a ver com concepções da África ocidental sobre a possessão por espíritos, que, como a do Brasil, é baseada em noções de penetração. De fato, concentrei-me (excessivamente, segundo ele) numa interpretação sincrônica do candomblé como uma instituição que, mesmo com origens africanas, teria se desenvolvido no contexto urbano brasileiro.A antropóloga Patrícia Birman também discute as concepções de feminilidade e masculinidade nos terreiros. A primeira é quase sempre associada aos filhos e às filhas de santo – que dançam e recebem os espíritos – enquanto a masculinidade se concentra entre os ogãs e os tocadores dos atabaques.A ideia de que as religiões afro são bem menos repressivas da homossexualidade do que outras denominações parece ser verdade. Em grande parte, porque nelas a moralidade não tem muito a dizer sobre a intimidade social e sexual dos seus membros. Mas nem por isso todos os terreiros são receptíveis aos gays. O antropólogo Luís Felipe Rios observa que os terreiros mais tradicionais tendem a rejeitar homens afeminados. Em seu estudo sobre HIV e os terreiros do Rio de Janeiro, o psicólogo e antropólogo Ralph Ribeiro Mesquita notou que, apesar da receptividade para com filhos gays, havia ali o mesmo preconceito em relação à AIDS presente na sociedade como um todo.Mesmo assim, não resta dúvida de que as religiões afro em geral representam um importante santuário para gays e lésbicas. Atualmente, exercem uma dupla resistência à crescente corrente fundamentalista evangélica, que mira seus ataques tanto contra os terreiros quanto contra os homossexuais.Peter Fry é editor do jornal Vibrant (Virtual Brazilian Anthropology), da Associação Brasileira de Antropologia, e coautor do livro O que é Homossexualidade (Brasiliense, 1983).Saiba MaisBIRMAN, Patrícia. Fazer Estilo Criando Gênero: Possessão e Diferença de Gênero em Terreiros de Umbanda e Candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUERJ/ Relume Dumará, 1995.LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002 [1947].RIOS, Luís Felipe. “Em busca da tradicionalidade: geração, gênero e sexualidade no candomblé baiano-carioca”. Boletim Sexualidade, Gênero e Sociedade, Cepesc/Uerj, p. 17, 2002.
Filhos de pombagira
Peter Fry